"Segure-me aqui a Língua desta Menina."
quinta-feira, maio 17, 2018
(Se é sensível a descrições de teor visceral, não leia mais. Embora haja piores.)
Tentei tossir, mas não saiu. Comi pedaços de pão inteiro, na esperança de empurrá-la aparelho digestivo abaixo, e-depois-logo-se-via (tentando desviar a memória daquela tia-avó que um dia foi parar ao Hospital com uma espinha de bacalhau atravessada no reto). — Nada.
Deitei-me desejando que a espinha demoníaca desaparecesse milagrosamente e tudo não tivesse passado de um sonho menos bom quando acordasse. A manhã chegou e, com ela — a facínora. Tomei duche com a espinha. Vesti-me com a espinha. Fui trabalhar com a espinha. Ao fim do dia, dei-me por vencida. Fui ao Hospital.
A funcionária da entrada parecia farejar algo embaraçoso no motivo da minha ida às Urgências, a avaliar pelo meu aspecto saudável e ao mesmo tempo inegavelmente acanhado. Não, não tinha objectos entalados nas cavidades vaginal nem anal (apre!).
— Tenho uma espinha espetada na garganta — sussurrei.
— Tem o quê? — rosnava a redonda senhora com olhos maliciosos, de dentro do guichet. A fina arte da velhacaria consiste em fazerem-nos repetir em bom som, numa sala cheia de pessoas atentas, o motivo do nosso embaraço.
— TENHO UMA ESPINHA ESPETADA NA GARGANTA — respondi, agora alto, para deleite da curiosidade mórbida que me rodeava.
Fui atendida pelo Otorrinolaringologista, um sujeito de bigode fininho, calma anestésica e paciência infinita, que espreitou cá para dentro decidindo mentalmente que instrumentos (de tortura) iria utilizar. Chamou o enfermeiro:
— Segure-me aqui a língua desta menina.
O jovem enfermeiro arrepanhou-me a língua enquanto o médico segurava uma pinça suficientemente grande para agarrar a parte mais larga da tromba de um elefante.
Conforme a pinça zoológica abria caminho goela abaixo, constatei no quão parecidos os humanos podem ser com os gatos em espasmos pré-vómito. Julguei que fosse vomitar na cara do enfermeiro que me continuava a esticar a língua como se fosse a passadeira vermelha dos Óscares.
Foram várias as investidas para chegar à espinha. As lágrimas escorriam-me pelos cantos dos olhos, enquanto tentava encontrar algum lado positivo naquilo, “vai que tinha ficado espetada à saída”.
Por fim, a super-mega-pinça caçou a diaba. Depois de tanto tempo enterrada nas minhas carnes tenrinhas e indefesas, esperava uma espinha gigante. Tinha menos de um centímetro. Muito pequenina. Mas velhaca, bem velhaca, a danada.
Ainda olho os carapaus com um desprezo que mais ninguém entende, a não ser a minha glote, que ainda guarda memórias funestas.
O arcano Cavaleiro de Paus recorda-nos que nada é definitivo. Em particular, quando se trata de algo que sabemos não pertencer onde está. É sempre melhor moderar os impulsos e degustar os prazeres da vida com algum cuidado.
Tudo o que não se encontra na sua devida natureza, mais tarde ou mais cedo acabará por partir. Restam as experiências vividas, a aprendizagem e o desapego.
A sentir-me um autêntico carapau-de-corrida,
Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online
Tarot | Reiki | Regressão | Reprogramação Emocional | Terapia Multidimensional
Marcação: casaclaridade@gmail.com
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1681
2 COMENTÁRIOS
Que delícia de conto, embora tenha lhe custado um certo receio do carapau.
ResponderEliminarRendeu-nos um bom alerta e a receita do carapau abaixo, obrigada, abraços carinhosos
Maria Teresa
Que saudades tinha de me rir aqui.
ResponderEliminarMas vou parar por hoje que tenho outras coisas a fazer.
Obrigada pelo seu comentário ♥