A Princesa Ranhosa, um Conto de Fadas Moderno

quarta-feira, outubro 25, 2017


ERA UMA VEZ uma bela princesa que vivia numa torre de apartamentos remodelados ali para os lados das florestas luxuriantes de Mem Martins, mesmo antes de chegar a Sintra. Bela é como quem diz: a voz de bagaço, o buço que lhe crescia junto aos cantos dos lábios, o acne, as olheiras profundas e os dentes podres dos tempos da heroína não a deixavam ser muito bem-apessoada; mas era a princesa de lá da rua, isso era.

Bela (diminutivo de Belarmina) suspirava por um mancebo escorreito da Amadora, que trabalhava na loja de reparação de telemóveis do Centro Comercial Babilónia.

Sonhava com o dia em que ele apanhasse a IC19 montado na acelera de cromados reluzentes e viesse salvá-la da reclusão da sua torre húmida, solitária e assombrada pelo fantasma da vizinha de cima (que ainda não se tinha finado, mas matava-lhe a paciência com o feitio desgraçado e o arrastar de móveis à noite).

Para seu desgosto, o gaibéu gostava de outra, uma flausina qualquer do Estoril, de cabelo-alisado-a-ferro-quente e unhas de gel cintilantes, espetadas como garras de gata assanhada. Cansada de esperar por um salvador que nunca chegava, fez uma longa trança com os seus cabelos e atirou-a pela janela.

Os transeuntes, que caminhavam em passo apressado para apanhar o comboio na interface Algueirão-Mem Martins, desviaram-se repudiados com o cheiro nauseabundo das melenas que não viam água há anos, onde os piolhos já tinham construído uma autêntica metrópole com arranha-céus, vias rápidas e edifícios com elevadores panorâmicos que iam dar à parte de trás das suas orelhas.

Vencida pela indiferença cruel do mundo ao seu sofrimento, atirou-se para a cama e enterrou o rosto no travesseiro. Havia de chorar até morrer.
Ou até lhe caírem os olhos.
Ou até o ranho lhe começar a entrar na boca.
Foi a terceira: quando as ranhocas começaram a empastar no buço, sentou-se na beira da cama e mergulhou as mãos nos bolsos do vestido à procura de um lenço para se assoar.

Encontrou um pente desdentado, um isqueiro Bic sem gás e, quando puxou com a ponta dos dedos pelo lenço ouviu o som metálico de algo a cair no chão. Uma chave! — tinha estado sempre no seu bolso. O tempo todo.

Limpou o ranho da cara com a manga do vestido, rodou a chave na fechadura e abandonou a torre onde se tinha fechado a si mesma, dando por findo o conto.

O arcano Oito de Espadas surge-nos com a clareza fria de uma mão que toca o próprio reflexo no espelho, mostrando-nos em simultâneo a vítima e o autor. De pouco adianta esperar por dias melhores, por alguém, por uma sorte que nos saia, pelo raio que nos parta, o diabo que nos carregue ou um deus que nos acuda.

Não vem ninguém porque ninguém nos pode salvar de nós mesmos.

Quando as circunstâncias da vida nos encurralam a um canto, só nos resta sair pelos próprios pés. Entre arriscar tomar uma decisão, ou permanecer insatisfeito por uma não-decisão, é preferível deixar de ser uma princesa, limpar o ranho — e sair da torre.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1653
Foto: licença CC0

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