Casimiro


Breve história em três tempos, para leitores ávidos e impacientes.

[Tempo um]
Casimiro era um homem de certa idade.
Tinha uma marreca notável.
Usava sempre um casaco grande.
Nunca casou, embora sonhasse com tal felicidade.
Não se lhe conheceu família.

[Tempo dois]
Um dia, Casimiro morreu.
Oh Casimiro.

[Tempo três]
Então, descobriu-se
que Casimiro não tinha marreca.
O que escondia dentro do casaco grande
eram asas de anjo.

Hazel

Rosa dos Ventos


Desço o ribeiro a baloiçar até ao mar
na canoa do teu abraço.

Beijos ébrios de maresia.
A madressilva dos teus olhos.

Abres estrelas do mar
das tuas mãos frias
no corpo de nevoeiro
perdido na bruma.

Enrolados em tentáculos de vontade
Navega-me em ondas de lençóis brancos
que vão e que vêm,
na maré que enche.

Velas da camisa desfraldadas
lambem o mastro, que se eleva húmido
Afundado no gemido das tábuas
Trémulas, rendidas à tormenta.

Desaguam os cobertores
escorridos aos pés da cama,
Entre as conchas e búzios
da roupa naufragada no chão.

Secreto, o tesouro de colares
Pérolas de leite doce e rubi vermelho
encharcado no marulhar do sémen das ondas.
Suspiras a bonança e o cansaço.

Sou o vento
Tu a rosa
que me sabe as direcções
que me encontra o sentido.

Hazel

Os malmequeres que nos querem bem


Ai o que eu gosto de malmequeres. Reconfortantes e malcheirosos, aparecem todos os anos quando já ninguém espera por eles, no momento em que se perdeu a esperança de que o Inverno vá alguma vez terminar e nos rendemos quebrados pela chuva mole, teimosa e eterna, um regozijo para o bolor que se imiscui pelos roupeiros bafientos e trepa paredes e ânimo.

Junto duas colheres de café solúvel, uma de açafrão e outra de canela em pó. Misturo água quente, mexo e levo aos lábios a velha caneca, fumegante e aromática; tem, por certo, muito mais de trinta anos. Era eu gaiata — foi quase ontem. É a minha caneca preferida.

A minha mãe tinha uma prima que não tomava banho. Poderia chamar-se Vera (prima-Vera), mas era Bárbara o seu nome — e bárbaro o tule odorífico em sua volta, quase visível, quase palpável. Paz à sua alma, já há muitos anos liberta do corpo que raras vezes terá entrado num chuveiro. Não importa, estimávamo-la na mesma.

Sorvo devagar o café-com-açafrão-e-canela na caneca com o desenho do texugo oferecida pela prima Bárbara numa das suas visitas e deixo a música tocar alto como que a exorcizar as últimas sombras nebulosas do Inverno: “A Primavera” de Vivaldi, interpretada pelo violinista Itzhak Perlman.

Era muito boa senhora, mau grado a falta de esmero na higiene pessoal. Os cabelos pintados de azeviche, impecavelmente ordenados com laca, o sorriso sereno e acolhedor, sempre amorosa e paciente. Falava baixinho, a dentadura ficava-lhe larga. Não me consigo lembrar sobre o que conversava, mas recordo a sua generosidade e bondade.

A prima Bárbara nunca avisava quando vinha visitar-nos. Aparecia sempre de surpresa, pela Primavera; como os malmequeres, reconfortantes e malcheirosos. Inesperados rasgos de luz invadem a casa, ou é isto ou é a mistura do açafrão e da canela no café. Olho pela janela e vejo malmequeres lá fora, um espectáculo para a alma oferecido pela Natureza, que escapa à atenção de quem passa. Pouso a caneca vazia e termino a crónica com a alma cheia de pétalas.

O arcano Ás de Paus aparece num súbito e inesperado impulso, como os malmequeres salpicam de luz os campos verdes e encharcados pelas chuvas, inspirando-nos a deixar o Inverno para trás e, junto com ele, as sombras, a indecisão, os receios. Assim, sem mais nem menos; a renovação e a novidade chegam para quem se dispuser a colher os malmequeres.

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online
Tarot - Reiki - Regressão - Reprogramação Emocional

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1673
Foto: Couleur, licença CC0

A Vendedora de Ovos


A SENHORA-GALINHA usa quase sempre o mesmo kispo cor-de-papas-de-aveia, a condizer com o tom das asas das suas galinhas. Roliça e muito baixa, encontro-a sempre sentada em doce pacatez sobre um banquinho que desaparece debaixo das saias, dando a ideia de estar a chocar os ovos que tem para venda.

Ao seu lado, sobre as pedras da calçada, as caixas de madeira cheias de ovos, alguns das suas galinhas, e um ou outro com o carimbo vermelho do aviário, mas quem é que vai reparar.

A tranquilidade de quem já viu muito e por isso sabe que não há penas que valham apoquentarmo-nos com pouco, fá-la esperar pelas clientes, quer chova, quer faça Sol, com o mesmo sorriso reconfortante que lhe ilumina o rosto trigueiro, salpicado por uma constelação de manchas deixadas pelos Verões, beijos de Sol que nunca desaparecem.

O olhar astuto, de quem faz as contas de cabeça com a mesma genica que uma galinha depenica dois grãos de milho, segue-me com atenção à medida que desço as escadinhas da vila de Oeiras pela manhã, sempre apressada como a lebre-das-maravilhas, numa maratona contra os ponteiros do relógio.

Retribui os meus bons-dias, enquanto choca os seus ovos com mansidão. Sei que me lê como a um livro, que percebe quando estou contente ou cabisbaixa. 

Deixo, pois também a leio: naquele vislumbre de breves segundos, sei que miga com paciência o pão velho para fazer papas para as galinhas, que recolhe os ovos com as mãos pequeninas e amorosas, as mesmas que não sabem escrever muito bem, mas sabem amar. Às vezes é dura com as palavras. Mas nem sempre. Há muitos anos que aprendeu a escolher quando falar e quando guardar silêncio, e a manter uma certa reserva com as pessoas. Sei tudo isso sem nunca termos falado — e aposto que ela sabe outro tanto de mim. Ou mais.

A senhora-galinha é a derradeira guardiã dos contos inventados e por inventar, das fábulas das cegonhas e das raposas, das galinhas com dentes, dos coelhos com asas e dos elefantes voadores. 

É por ela que ainda existem ovos de ouro; são exactamente esses que choca sentada em frente ao muro de cimento que não tem cor nem luz, mas que ganha vida e apenas existe por ela estar ali, assim como aquele fragmento de dia é essencial para preservar a doçura trigueira das minhas sardas de menina que um dia serão também manchas da idade, beijos de Sol dados ao longo de muitos Verões — como os seus. Fazemos parte da vida uma da outra. Somos amigas, sem sequer nos conhecermos.

O arcano Três de Copas inspira-nos a encontrar alegria, doçura e amizade ao virar da esquina — e quando não o encontrarmos, talvez porque já escasseiem no mundo (ou porque nem todas as localidades têm a sorte de ter uma senhora-galinha), sejamos nós a levá-lo.

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online
Tarot | Reiki | Regressão | Reprogramação Emocional | Terapia Multidimensional

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1671
Ilustração: Prawny, licença CC0