Todas as atenções recaíam no menino que nem o guardanapo deixava cair ao chão. Pelo canto do olho, via o avô palitar os poucos dentes que ainda conservava, enquanto saía um arroto sem pudor nem cerimónia, e voltava a concentrar-se no seu prato, porque no seu universo de água-de-colónia com cheiro a talco e roupa de marca impecavelmente engomada, não havia espaço para a rudeza humana.
O Ricardinho foi crescendo sem abandonar o porte frio e aristocrático até se tornar adulto e acumular títulos académicos conseguidos à custa de muita cábula e copianço. O que importava era o resultado, não os meios para lá chegar - e chegou, ora se chegou. O menino dos papás veio mesmo a representar um cargo autárquico, para deleite dos progenitores, que entretanto ficaram demasiado importantes e cheios de si para cumprimentar os vizinhos.
Nos grandes encontros gastronómicos, o Ricardinho mantinha o mesmo esmero e elegância no manuseio dos talheres, que cortavam pedaços de vitela barrosã com a mesma precisão e argúcia com que cortava o orçamento de acordo com os interesses que melhor o serviam. Todos sabiam que o menino Ricardinho era travesso, mas poucos se atreviam a referir as suas marotices, com excepção de um jornal onde trabalhavam pessoas levadas da breca, honestas e de olho vivo que, ao contrário do menino, não viam o que lhes convinha, mas a verdade nua e sem artifícios.
Para grande embaraço do Ricardinho, certa vez, ao comer uma sopa da pedra, encontrou um cabelo. Discretamente, puxou-o da boca, mas o cabelo era enorme e nunca mais acabava. Quanto mais puxava, mais o cabelo parecia crescer, tornando-se impossível fingir que ele não existia. O vexame foi inevitável. O menino Ricardinho queria abafar o caso, mas ainda assim, a verdade já estava nas bocas do mundo.
Esta semana, o arcano Rainha de Espadas ensina-nos que nem sempre a verdade é devidamente recompensada e raros são os que preservam a ética, mesmo longe dos olhares alheios. Ainda assim, sempre haverá um denunciador cabelo na sopa, onde quer que se coma.
Hazel
Consultas em Oeiras e online
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1606
foto: "Portrait of a boy", Kurt Günther
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