Boa tarde, então, como vai isso?, perguntava a mulher de avental debotado, lábios frios e secos que não eram beijados com lascívia há mais de vinte anos e cabelo curto. Na alcofa, trazia o pão ainda quente e um pacote de farinha para as pescadinhas-de-rabo-na-boca que ia fazer para o almoço.
Olhe, vai-se andando, cada um com a sua cruz, respondia a vizinha, carregada pelo preto das roupas que cheiravam a mofo, de cabelo impecavelmente apanhado num carrapito e um saquinho da farmácia com remédios para os nervos.
Todos os dias era igual. Vivia-se a preto e branco - na televisão e fora dela. Aguentava-se com discrição os açoites, abusos, insultos e toda a crueza da vida, não esperando que esta pudesse alguma vez vir a ser mais do que isso. A gratidão era um dever moral inquestionável.
Podia-se ser espezinhado no emprego pelo chefe, mas estava-se grato pelo ordenado ao fim do mês e pelo bacalhau que este oferecia pelo Natal. Podia-se ser uma criada sem ordenado a vida toda, trabalhando de Sol a Sol para manter a casa limpa, a roupa lavada, os miúdos educados e as refeições na mesa a horas certas, enquanto o homem ia para a taberna beber copos-de-três até chegar a casa a arrastar os pés. Mas estava-se grata por ter uma casa e um marido.
Cada um aguentava à sua maneira, calava e engolia sapos do tamanho de paquidermes. Ninguém gosta de admitir, mas a verdade é que, de um modo geral, somos uma cambada de frouxos.
Acomodamo-nos às circunstâncias mais frustrantes e pouco dignificantes que alguma vez pudéramos imaginar. Por esse motivo, prevalecem casamentos de décadas onde já nada existe senão ressentimento, rotina, obrigações e uma imagem a manter; empregos onde se faz o mesmo de sempre, mecanicamente, com a mesma expressão azeda e lívida emoldurada por olheiras escuras. Somos campeões em aguentar. Precisamos de ser severamente esbofeteados para que o sangue nos suba às faces e volte a circular livremente, trazendo vida a este corpo meio inerte pelo hábito continuado e anestésico.
Esta semana, o arcano O Julgamento mostra-nos que os momentos de crise e de tensão podem ser, justamente, a oportunidade que precisávamos para nos libertarmos dos ciclos viciosos onde nos deixámos capturar.
Um dia, o homem dos copos-de-três disse que ia comprar tabaco e nunca mais voltou. Deixou o emprego, assumiu a homossexualidade e foi viver com um taxista de bigode farfalhudo. Passou a conduzir o táxi e não voltou a beber.
A mulher do avental debotado teve um caso amoroso com o homem da peixaria, deixou crescer o cabelo, passou a usar batom vermelho e nunca mais cozinhou. A do carrapito e roupa preta recebeu ordem de despejo da senhoria e deixou os fantasmas para trás, indo viver com a filha para o país dos cangurus, onde passou a usar roupas com padrões garridos depois de conhecer um viúvo numa festa local.
Quando a vida nos dá uma bofetada, digo, uma segunda oportunidade para sermos felizes, temos pavor dela como um pássaro que passou a vida toda em cativeiro receia voar fora da gaiola. Podemos abrir a porta da clausura e devorar a liberdade. Ou deixamo-nos ficar como estamos, arrumadinhos como um par de sapatos velhos que já não dançam no baile.
Hazel
Consultas em Oeiras e online
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1605
foto: Anne Taintor
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