LÁ VAI A RATINHA toda espevitada. Viram-se cabeças à sua passagem, os prédios meio decrépitos desviam-se. Inclinam-se os degraus da Bica, debruçam-se os candeeiros da rua. Não há quem não se espante ao vê-la, tão viva e airosa.
O Elias do talho conhece-a bem, esse magano, assim como a Virgínia-florista, que nunca mais recuperou do susto desde que a Ratinha lhe entrou na loja para elogiar o esmero com que compusera o arranjo de coroas imperiais.
À sua maneira, a Ratinha é uma lenda viva que um dia foi uma vizinha comum, como tantas outras: baixinha e bombástica, uma pequena mulher-nitroglicerina, sempre com a ponta do lenço a espreitar do bolso para limpar o ranho à canalha, as mãos calejadas de tantas escadas varrer e a preocupação diária de ter o jantar do marido pronto-a-horas.
Sofria dos nervos e de pés chatos. Pelava-se por grão com mão-de-vaca. Não ela, o marido. E não podia ser grão de lata; tinha que ser do outro. O raio do homem era minhoquinhas.
A boa Ratinha, que na época era chamada pelo seu nome de nascimento – o qual ninguém já se lembra –, pôs o grão a cozer na panela-de-pressão, danada com a vida, com os chatos dos pés, com a vizinha do rés-do-chão-esquerdo e com o gaiato do meio, que tinha arranjado chatices na escola.
A pressão da panela subia, o apito tornava-se insuportável, e os gritos da Ratinha ecoavam pela rua como um coro de fúria doméstica. No fatídico momento em que uma pele de grão entupiu o pipo, o silêncio durou apenas um segundo. Depois, veio o estrondo: CABUM!
A pressão da panela subia, o apito tornava-se insuportável, e os gritos da Ratinha ecoavam pela rua como um coro de fúria doméstica. No fatídico momento em que uma pele de grão entupiu o pipo, o silêncio durou apenas um segundo. Depois, veio o estrondo: CABUM!
A cozinha transformou-se num campo de batalha. Fragmentos de grão espalharam-se como estilhaços, o molho a ferver escorria pelas paredes, e pedaços de mão de vaca aterrorizaram a vizinhança ao atravessarem as janelas abertas.
Um cheiro intenso e grotesco a grão queimado misturado com carne inundou o ar. A vizinha do rés-do-chão-esquerdo berrou: «Ai, Jesus, é uma bomba!», enquanto as crianças começaram a chorar em uníssono, ainda na rua. Até o gato da casa ao lado saltou da janela com um miado de pavor. No meio do caos, a Ratinha foi atingida por uma onda de vapor escaldante que a lançou para trás, parando-lhe o coração num instante fatal.
Era como se o mundo inteiro tivesse ficado em suspenso por um momento, enquanto os ecos do estrondo ainda se dissipavam pelas vielas.
Foi um funeral igual a tantos outros. O padre celebrou as exéquias, as vizinhas choraram com gosto e os gaiatos estavam inconsoláveis, com três palmos de ranho pendurado do nariz e as caras encharcadas de lágrimas. O Elias do talho, que sempre fora seu admirador, depositou uma coroa de rosas rosa-escândalo denunciadoramente maior que os restantes arranjos florais, mas já nada disso importava.
Todos desviam o olhar para evitar encarar a inevitabilidade fria e rude do arremesso de uma pá cheia de cal antes de fechar a tampa do caixão. Mal a cal foi lançada sobre o rosto lívido, a Ratinha deu um salto no caixão como se tivesse acabado de receber a descarga eléctrica de um relâmpago.
Foi um funeral igual a tantos outros. O padre celebrou as exéquias, as vizinhas choraram com gosto e os gaiatos estavam inconsoláveis, com três palmos de ranho pendurado do nariz e as caras encharcadas de lágrimas. O Elias do talho, que sempre fora seu admirador, depositou uma coroa de rosas rosa-escândalo denunciadoramente maior que os restantes arranjos florais, mas já nada disso importava.
Todos desviam o olhar para evitar encarar a inevitabilidade fria e rude do arremesso de uma pá cheia de cal antes de fechar a tampa do caixão. Mal a cal foi lançada sobre o rosto lívido, a Ratinha deu um salto no caixão como se tivesse acabado de receber a descarga eléctrica de um relâmpago.
O horror apoderou-se de todos. Pior do que testemunhar a morte, é vê-la levantar-se, espavorida, de um caixão e sair meio manca, com o casaco descosido atrás, em direcção à saída do cemitério.
Ficou com os olhos mirrados e arrepanhados, pequeninos como os de um rato, queimados pela cal, mas estava mais viva e satisfeita que nunca. Quem lá estava não esqueceu. Muitos não pregaram olho nessa noite. Saiu a cambalear, directa para casa, e a primeira coisa que fez foi atirar com o que restava da panela de pressão pela janela. Nunca mais se enervou. Nunca mais se comeu grão naquela casa.
O arcano Dez de Paus alerta-nos para as panelas de pressão que ameaçam explodir a qualquer momento, esgotando-nos a paciência, a energia e o tempo. Porque nem todos podem ter a sorte da Ratinha, é mais sensato respirar fundo, descomprimir, e o resto que espere.
Ficou com os olhos mirrados e arrepanhados, pequeninos como os de um rato, queimados pela cal, mas estava mais viva e satisfeita que nunca. Quem lá estava não esqueceu. Muitos não pregaram olho nessa noite. Saiu a cambalear, directa para casa, e a primeira coisa que fez foi atirar com o que restava da panela de pressão pela janela. Nunca mais se enervou. Nunca mais se comeu grão naquela casa.
O arcano Dez de Paus alerta-nos para as panelas de pressão que ameaçam explodir a qualquer momento, esgotando-nos a paciência, a energia e o tempo. Porque nem todos podem ter a sorte da Ratinha, é mais sensato respirar fundo, descomprimir, e o resto que espere.
Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1640
Foto: Leroy Skalstad, licença CC0
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