SENTEI-ME A BEBER UM CAFÉ com os fantasmas. No rádio toca Cyndi Lauper para distrair a melancolia, enquanto o Sol ondula como uma sereia de fogo por trás de um véu de nuvens brancas e vaporosas.
Muito antes do meu nascimento, a minha avó herdou da sua prima uma toalha de linho antiga. A dita prima era referida como “excêntrica”. Vivia sozinha numa casa abafada e silenciosa, morbidamente arrumada. Tão cristalizada no tempo que nem as aranhas faziam teias. As janelas tinham redes para filtrar a entrada dos mosquitos — e da vida.
A sua única companhia era o espírito da falecida irmã; por isso não se sentava a meio do sofá mas sempre no canto, de forma a que esta pudesse ocupar o espaço que continuava vazio ao seu lado.
O fantasma não foi invejoso. Aguardou com a mansidão de quem sabe que o fim sempre acaba por chegar. A prima Rosa partiu muito velha e totalmente ignorante dos prazeres-de-alcova. Que é como quem diz: virgem. Vestiram-na toda de cor-de-rosa, a cor do seu nome e da feminilidade nunca explorada na carne –, como era tradição.
A toalha de linho, que já conta perto de duzentos anos, passou grande parte da existência guardada como uma relíquia esquecida no fundo de um baú com bolas de cânfora, no sótão da casa onde cresci. Ninguém lhe tinha particular afeição. A minha avó não a usou. A minha mãe também não.
A prima Rosa não era louca. Misteriosa e solitária, tinha uma sensibilidade rara que lhe permitia ver o que os outros não conseguiam. Reconforta-me ter sido a sucessora da velha toalha de linho e talvez de alguma da sua excentricidade.
Sorrio aos fantasmas que me observam sentados em silêncio, testemunhas de uma vida que aprendeu resignadamente a aceitar as ausências. Aumento o volume da música que toca na cozinha para ter a certeza que não sou também um fantasma.
Simples, discreta e rústica, a toalha de linho da prima Rosa esteve décadas intermináveis a repousar sob o manto do oblívio, até retornar à vida sob a minha mesa de trabalho. As cartas de Tarot deslizam sobre a trama do linho como uma aranha viaja no fio do tempo, navegando as teias do destino, os enlaces e encruzilhadas. O livro da vida abre-se sobre a antiga toalha que detém os mistérios da vida e da morte.
O arcano Dez de Espadas vagueia ao nosso redor como um fantasma misterioso, soprando no vazio que todas as almas transportam, reclamando um lugar para se sentar a seu lado. Não devemos deixar que os nossos fantasmas fiquem por muito tempo — ou corremos o risco de encontrar redes nas janelas a filtrar-nos a vida e o ar novo.
A dançar na cozinha,
Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1641
Foto: junko, licença CC0
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