Conversar com árvores


Foi num Equinócio de Outono que me tornei amiga de uma árvore. Numa pequena mata com várias árvores e arbustos, encontrei uma área onde o chão está coberto por um grande quadrado de cimento, talvez despejado dos restos de uma obra. O cimento rachou e, de dentro da fenda, nasceu um loureiro.

Solitário e inacessível como um náufrago que habita uma ilha de cimento, observa ao longe a dança entrelaçada de todas as outras árvores ao compasso do vento.

Suspendi-me no tempo, em contemplação, sob o Sol profético de Setembro, encantada na beleza e no verde perfume das suas folhas. Sussurravam ecos do êxtase pítico, evolados pelos fumos apolíneos de Delphi.

Que intrigante ironia das tramas do destino, a do tenaz loureiro emergir das profundezas da terra justamente na fenda do cimento, assim como a Sacerdotisa mediava no Oráculo, sentada na trípode sobre a fenda de onde a serpente exalava os vapores sagrados.

O loureiro olhou-me de volta com os seus olhos verdes de clorofila e reconhecemo-nos um no outro. Disse-me para jamais esquecer que uma árvore nasce de uma semente e cria as suas próprias raízes, onde se deve apoiar, erguendo-se alta e plena de si. É esse o caminho do Sol, apontaram os seus ramos, que se trilha com perseverança, graça e verticalidade. Uma árvore nunca desiste. Tudo vê, tudo ouve, tudo sabe — e nada a perturba.

Com a permissão de Dafne e Apolo, trouxe alguns dos seus ramos para casa. Ocasionalmente, queimo uma folha, em honra da sábia serpente que ascende em espirais de fumo até àquele lugar por onde viajam na carruagem de Apolo os que conversam com árvores e ainda crêem que os Deuses vivem.

Sob os ramos do loureiro,

Hazel

Ilusão Intemporal


















Há tempo para tudo, mesmo quando não temos tempo para nada.
Há tempo para rir, quando há tempo para chorar.
Tempo para arriscar, quando há tempo para sonhar.
Tempo para amar, quando há tempo para ralhar.

Tempo para calar, quando há tempo para falar.
E o contrário também.

Tempo para ver o tempo passar, quando há tempo para andar em contratempo.
Tempo para dançar, quando há tempo para lamentar.
Tempo para esquecer, quando há tempo para lembrar.
E o contrário também.

Só não há tempo para viver, quando é tempo de morrer.

A mulher que guardou o Verão em frascos de vidro


Bastava que um delicado fio de Sol lhe incidisse nos olhos castanhos para revelar a chama alaranjada de ágata de fogo que se escondia no fundo da sua alma. Tinha as fogueiras, as danças e os ritos de Beltane dentro de si, sob a insuspeitada e enigmática serenidade do cisne branco que desliza sobre um espelho de água.

O sopro dos Invernos fazia esta luz tremeluzir como uma vela que ameaça extinguir-se, mergulhada na melancolia dos dias escuros. A chegada da nostalgia dos dias frios era como um casaco cinzento de malha fina e gasta, ensopado pela chuva, que se cola à alma e a gela.

Decidiu que a tristeza peganhenta e invernosa não iria mais agarrá-la. Essa velha traiçoeira de dedos longos e ossudos não voltaria a apanhá-la desprevenida. As ágatas de fogo iriam reluzir nos seus olhos ao longo de todo o Inverno. Podemos ser felizes para sempre, sim. Como nas histórias. É só querer. Querer muito, e nunca parar de querer, aconteça o que acontecer. E ela queria-o em cada célula do seu corpo.

Então, passou o Verão inteiro a armazenar partículas de ar quente e feliz dentro de frascos de vidro. Sempre que queria preservar um momento de alegria acabado de viver, abria um frasco, movimentava-o à sua frente traçando uma lemniscata, e fechava-o de imediato, aprisionando aquele ar doce e frutado. Às vezes, guardava gargalhadas que pareciam não ter fim dentro de frascos onde colava o rótulo "Euforia".

Acumulou vários frascos de vidro ao longo de um Verão pleno de dias felizes, que etiquetou cuidadosamente e armazenou num baú de madeira de cedro, para quando viesse o Inverno.

As pessoas viam os frascos vazios a entrarem naquele baú e comentavam entre si que era louca, por achar que podia guardar o Verão dentro deles. Excêntrico. Absurdo.

Os dias frios chegaram e, com eles, começou a sentir ao longe o passo arrastado da velha traiçoeira que ameaçava entrar sorrateiramente com o vento frio que uiva pelas frinchas das janelas. "Já estava à tua espera", disse ela.

A tampa do baú rangeu ao ser levantada pelas suas mãos sábias, que abriram os frascos todos, um por um. Gotas de transpiração escorreram-lhe na parte de trás do pescoço.

Torrentes de luz brotavam, queimando-lhe a pele. As labaredas das ágatas de fogo dançavam nos seus olhos. Ouviam-se gargalhadas, vozes alegres e desconcertantes, o bater das asas de pássaros, o som do mar, o sopro do vento que corre as searas...

Foi o Inverno mais quente de sempre. E o mais feliz.

A destapar frascos de vidro,

Hazel

Viver em Apartamento: Como Ser um Bom Vizinho

Este post escreveu-se mentalmente na minha cabeça durante a madrugada de 6ª feira, enquanto os vizinhos de cima arrastavam móveis de forma descontrolada, como se estivessem a jogar xadrez com sofás, cadeiras e cómodas gigantes.

Admito que posso ter tido alguns pensamentos homicidas. E desculpo-me a mim mesma pelas torturas medievais que me imaginei a submetê-los, porque eu sou uma flor de vizinha e não mereço ser privada do meu sono.

Há algumas regras de educação e bom-senso para que seja possível viver de forma salutar e satisfatória num prédio. Procuro cumpri-las todas.

Não posso dizer que nunca falhei, mas, se o fiz, foi acidental, e jamais por não me importar com a paz alheia (OK!, excepto na adolescência, quando ficava sozinha em casa e aumentava o volume da música. Mas era boa música. Foram os anos '80, estou ilibada de culpa?)

Então, e o que é isso de ser um Bom Vizinho?
Um Bom Vizinho é quase uma espécie de super-herói pachola. Três vivas aos bons vizinhos. Três? Não, dez vivas, que eles merecem.

Um Bom Vizinho nunca...
(podeis imprimir isto, Senhores, e colar nas paredes dos prédios por este mundo fora!)

... deixa que a roupa estendida fique a tapar a janela dos vizinhos de baixo (p. ex.: lençóis grandes), nem estende roupa que não foi torcida/centrifugada e fica a escorrer água para os outros estendais;

... faz sardinhadas ou grelhados na varanda/janela, que ficam a encher a casa dos outros vizinhos de fumo e cheiro intenso;

... arrasta móveis à noite;

... martela ou faz furos com berbequim num Domingo de manhã cedo. É um clássico, em todos os prédios tem de haver um chato que esburaca paredes nas manhãs de Domingo;

... deixa o saco do lixo à porta de casa, nas escadas comuns;

... anda de sapatos de salto alto dentro de casa;

... permite que as visitas façam barulho que incomode os vizinhos;

... põe música alta, ou toca instrumentos musicais alto;

... atira com cinza, beatas de cigarro ou outro lixo para a varanda dos vizinhos de baixo;

... sacode tapetes para cima da roupa estendida dos vizinhos, ou quando estes têm as janelas abertas. Pode sempre pedir-lhes antes que fechem as janelas por uns minutos;

... tem a cama de casal mal aparafusada. If you know what I mean, ninguém quer ouvir, ninguém quer saber e, pior, ninguém quer imaginar;

... deixa que o seu cão passe o dia ou a noite inteira a ladrar;

... leva o cão para fazer as necessidades em frente à entrada do prédio dos outros. Ou do próprio prédio onde mora;

... estaciona ocupando dois lugares de estacionamento.

Não é assim tão difícil preservar o bem-estar dos outros, da mesma forma que gostamos que preservem o nosso. São as pequenas cortesias que sustentam as estruturas para um mundo melhor.

Uma flor de vizinha,

Hazel

Duelo na janela da minha casa-de-banho

Na janela junto à minha banheira mora uma aranha que trabalha no mercado imobiliário. Está a expandir a sua propriedade a olhos vistos, com os lucros provenientes dos bilhetes de entrada que cobra aos insectos que lá caem, no engodo de me verem a tomar duche.

Esta semana, enquanto eu esperava que o condicionador fizesse o efeito-que-promete naqueles 3 minutos de ilusão-de-um-cabelo-melhor, um melgão com atitude de cafajeste resolveu entrar sem pedir licença e invadir os domínios da Aranha-Gorda. 

Pousou na janela como um cowboy que entra num saloon onde sabe que vai ser matar-ou-morrer. Lançou um olhar provocador e cuspiu para o chão (que é como quem diz, para a janela). A Aranha-Gorda rosnou. A janela é dela, a banheira é dela e eu sou dela (?). 

Trocaram insultos, ameaças e olhares de desprezo. E eu ali, como vim ao mundo, a única testemunha daquele momento BBC Vida Selvagem.

Num segundo, tirei o condicionador do cabelo, enrolei-me numa toalha e fui a chapinhar pelo chão da casa toda em busca de uma máquina fotográfica.

Aquilo que aconteceu ficou registado para sempre na memória de todos os insectos. 
Depois deste duelo, a Aranha-Gorda vai passar fome, porque nunca mais nenhum bicho com asas, patas e amor à vida voltará a aproximar-se desta janela.

Seguem as imagens, que, aviso, são terrivelmente violentas:

O desafio do Melgão-Cafajeste.

Atitude "badass". É agora que desatam à chapada uma à outra.
A mutilação
O triunfo da Aranha-Gorda.
É assim que se resolvem as coisas na janela da minha casa-de-banho. 

Não é uma montagem - a aranha realmente arrancou a pata do melgão. 

É inegável que esta aranha é uma durona, uma rufia. Hoje mesmo, depois de umas 50 sequências de flexões, pediu-me um bife em sangue com batatas fritas. Só me resta perguntar: "As batatas, são em cubos, ou aos palitos?"

A tremer por todos os lados,

Hazel