Uma página solta no diário de uma mãe


O meu filho este ano anda na mesma escola onde estudei. No dia da apresentação, não pude deixar de sentir uma certa estranheza quando pensei: agora venho aqui como mãe, não como aluna. Senti-me como o Marty McFly, numa viagem ao futuro, ao ver-me, agora crescida, e com um filho pela mão.

Uma mãe -  contudo - que ainda ouve os AC/DC alto, toca uma guitarra eléctrica imaginária e tem uma tatuagem no braço. A tradição já não é o que era, graças aos Deuses. A-ha!

De vez em quando, ainda sonho que estou atrasada a caminho da escola, subo as escadas a correr, entro na sala de aulas onde está a decorrer um teste escrito para o qual não estudei, e acabo por não conseguir fazê-lo, porque já terminou o tempo. Há mais de 20 anos que tenho sempre o mesmo sonho, na mesma sala.

Depois da escola ter sido demolida e reconstruída, tinha alguma curiosidade em ver como são as salas de aula agora, em pleno séc. XXI.

Quando entrei para a apresentação, durante uma fracção de segundo, o mundo parou.
Era exactamente a mesma sala de aula dos meus sonhos.
Que momento twilight zone! Quão estranho é isto? Ainda não estou em mim.
Apetecia-me dizer a toda a gente: "Hey, esta é a sala com que tenho andado a sonhar nos últimos 20 anos! Já posso acabar o raio do teste?"
Mas não vou envergonhar o meu filho já no começo do ano lectivo.

Agora tudo é controlado através da internet, palavra desconhecida no meu tempo.
Os quadros negros de ardósia onde se escrevia com giz deram lugar a imaculados quadros brancos, com projector de imagens ligado ao computador do professor.

(Onde terão ido parar as centenas e centenas de quadros de ardósia que havia pelas escolas do nosso país todo, alguém sabe?)

Já ninguém passa bilhetinhos por baixo da mesa. Os telemóveis proliferam. Pergunto-me se ainda se escreverão mensagens nas portas das casas-de-banho. 

Os alunos alinham-se em fila sobre uma risca branca pintada no chão e seguem ordenados para a sala de aula atrás do professor. Não sei como me sentir em relação a isso. Por um lado, compreendo a necessidade de organização, por outro, pareceu-me ter ouvido uma voz longínqua cantar dentro de mim o refrão "All in all, you're just another brick in the wall".

O primeiro passo para a formatação requerida por uma Sociedade onde tudo deve ser ordeiro e obedecer a um estereotipo ideal. Talvez seja eu que sou uma bota-de-elástico, por ainda sonhar com o Peter Pan e a Terra do Nunca, onde não existem linhas rectas, mas vôos em espiral. Perdoem-me pelo desalinhamento.

Curiosamente, desde o dia em que vi materializada a sala que visitei em sonhos durante mais de 20 anos... nunca mais sonhei com ela.

Ao som de Pink Floyd,
Hazel

Com os Parafusos todos bem Apertados

O calor do momento são as engrenagens da vida em sobreaquecimento, por estarem há demasiado tempo a rodar na mesma direcção. Ferro escaldante que bate contra ferro incandescente num movimento já gasto, estafado, mas demasiado célere para conseguir travar.

Um grão de areia que cai no ponto certo de ebulição faz saltarem faíscas e provoca explosões, emoções e palavras corrosivas que queimam e derretem o metal.

As engrenagens fumegantes perdem velocidade. O fumo preto risca o céu azul matutino.
Tudo se desencaixa, tudo se desmonta. Inúmeras peças pequeninas que se soltaram rodam pela rua fora, sem destino. O metal estala de alivio ao arrefecer.

Silêncio.

A máquina da vida, que é perfeita, volta a ser cuidadosamente aparafusada por hábeis e pacientes mãos. O vento sopra morno e as engrenagens recomeçam a rodar, desta vez, numa direcção diferente.

O monstro obsoleto onde o cotão se empastava em óleo queimado e malcheiroso é agora uma primorosa reinvenção steampunk, onde as rodas dentadas giram reluzentes com o ritmo da música. No calor do momento, mudam-se destinos.

No centro da roda dentada,
Hazel

Mensagem numa Garrafa


Tenho um caderno velho que me acompanha sempre. É o meu caderno das ideias.
Escrevo muito lá, mas a maior parte dos meus gatafunhos nunca chega a sair do papel. Alguns, estão há anos entregues ao esquecimento, entalados entre a página anterior e a seguinte à espera de um dia ganharem vida ao serem lidos em voz alta.

No outro dia, levei o caderno para a praia, não fosse dar-se o caso de me surgir uma ideia luminosa como as tardes de Agosto e precisasse urgentemente de anotá-la antes que alguma nuvem trapaceira a levasse. Escrevinhei umas frases soltas, que me iam nascendo saltitantes e aleatórias como as pulgas-da-areia.

As ideias acabaram por fugir com a corrente para longe, e eu resolvi mergulhar no fundo do mar e reler os apontamentos que estavam para trás no meu caderno. Foi quando encontrei algo que um dia escrevi para mim, com o objectivo de ser uma espécie de mensagem numa garrafa, enviada pelos mares do tempo para o meu próprio futuro, caso um dia precisasse de um mapa de tesouro que me trouxesse de volta a mim mesma.

Dizia assim, a minha mensagem na garrafa:

O meu vazio é a minha sombra. Às vezes, tenho de me encontrar com ele.
Faz parte de mim também. Neste vazio, onde tudo cabe, posso ser tudo o que eu quiser. Posso fazer tudo o que eu quiser. Porque sou livre. Enfim, livre!
E, para ser feliz, preciso de salpicar este vazio com umas pitadas ocasionais de:

uma dose de aventura
mistério
riso
alegria
entusiasmo
comida saborosa
vinho tinto
cheiro de terra, árvores e plantas
vento morno
dançar
sonhar
verde, muito verde!
Sol
alongamentos
estudo e descobertas
viajar

Não precisa ser tudo ao mesmo tempo. Nem sei se aguentaria tanta felicidade. Pode ser um destes ingredientes de cada vez.

Quando estiver triste e me esquecer, basta-me vir aqui, e reler a minha mensagem na garrafa.

A velejar ao sabor do vento,
Hazel

Colaboração com programa de rádio

Lá do outro lado do oceano, no Brasil, existe um programa de rádio infantil chamado Vitrolinha da Rua, que tem o apoio da TV UFPB/TV BRASIL. 

Nesta rádio, contam-se histórias infantis, lendas, há trava-línguas, música, poesia e muita, muita magia. Este é um projecto inclusivo, desenvolvido a pensar nas crianças cegas.

Há algumas semanas, esta vossa escriba, que tem alma de Peter Pan, foi convidada para colaborar com a Vitrolinha, fazendo a narração de uma história infantil.

Sendo eu portuguesa, concebida, nascida e criada em Portugal, tive algum receio que a minha pronúncia talvez não fosse bem compreendida ou apreciada.

Mas o projecto é tão delicioso e cheio de amor, que resolvi mergulhar de corpo e alma... e o resultado desta união entre Portugal e Brasil não poderia ter sido mais divertido e encantador!

Partilho convosco o programa, com o título "A casa da bruxa", que pode ser escutado online, ou podem também fazer download e levar para ouvir no carro com os vossos gaiatos.

Quando ouvirem a pronúncia de Portugal (a partir do minuto 16)... já sabem quem é! grin emoticon



No espírito da Formiga-Rabiga,
Hazel

As Rosas de Heliogábalo - Alma-Tadema

"As Rosas de Heliogábalo" - 1888
Ninguém diria que este quadro, pintado pelo holandês Sir Lawrence Alma-Tadema, tão belo, delicado, leve e perfumado, na verdade, é um retrato perfeito da malvadez requintada.

Heliogábalo é o cognome atribuído post mortem ao jovem imperador romano Marco Aurélio Antonino. Tornou-se Imperador aos 14 anos de idade, foi assassinado aos 18.

Os seus quatro anos de poder (e últimos de vida) foram marcados pela excentricidade e escândalos sexuais e religiosos. Casou-se 5 vezes, uma das quais, com uma virgem vestal. Teve vários amantes do sexo masculino, usava maquilhagem e prostituía-se. Ofereceu uma fortuna ao médico que pudesse operá-lo de forma a ter órgãos sexuais femininos.

O quadro "As Rosas de Heliogábalo" eterniza um banquete onde se vê o Imperador em segundo plano, deitado juntamente com alguns dos seus favorecidos, a observar com deleite os restantes convidados enquanto estes são asfixiados com milhares de violetas, rosas e outras flores que caem inesperadamente de um tecto falso.

Um assassinato perfumado, premeditado por um Imperador caprichoso, intoxicado pelo próprio poder e pelo sentido de beleza até no mais vil e traiçoeiro dos actos.

Sobre o perfume das flores,

Hazel