Como Lidar com o Bloqueio Criativo


PREPARO UM café simples (desta vez, sem os extraordinários obséquios aromáticos da canela e do açafrão) para servir de combustível milagro-epifânico. Deixo-o escorregar lentamente goela abaixo. E nada.

Quer isto dizer, ‘nada’ é uma forma de colocar a questão; em boa verdade, a Bic-laranja-escrita-fina gatafunhou uns metros de tinta que jazem apartados dos olhos do mundo, ao longo das linhas monocórdicas de um caderno fora-de-moda com capa do pato Donald.

Pintei o silêncio branco com as cores de Vivaldi. Depois, uns breves e delicados salpicos de Chopin. Nada ainda. Bato com a ponta do pé no chão como quem envia um discreto e contido (porém, não menos desesperado) pedido de socorro em código morse aos deuses telúricos.

Sorrio ao pensar que, no meu caso, os deuses telúricos seriam, na verdade, os vizinhos do andar em baixo, certamente a questionar-se porque caramba não descalcei hoje as botas quando cheguei. Porque há um texto para escrever, ora.
E asinha, asinha, que a vida não espera.

Bem se sabe que a pressa é o assassino a sangue-frio da criatividade, mata-a antes mesmo de ter chegado a nascer. O pé continua a bater ao de leve no soalho e o vernáculo sucede-se mentalmente, atiçando as ideias que se acabrunham com os nevoeiros do lusco-fusco. Descubro-me num terrível e infame bloqueio criativo que me atormenta o espírito e angustia o relógio.

Guardo o texto, meio alinhavado. Depois do pôr-do-Sol há menos distrações; terminá-lo-ei de pijama, quando não sobrar mais nada do dia e me encontrar mergulhada na bolha de silêncio que se instala quando todos dormem.

Rendo-me à noitada e eis que começam a surgir as primeiras ideias como estrelas tímidas, difusas no céu saturado pelos reflexos das luzes citadinas. Componho uma constelação lexical com cuidado e amor. Leio. Releio. Dezenas de vezes. Corrijo erros. Reordeno ideias. Corto aqui, coso ali, faço bainha acoli e a modesta colcha de retalhos lá começa a ganhar algum jeito.

Mal envio o danado do texto ao Vítor Arsénio, responsável pela paginação, encontro-lhe um erro que não tinha visto em nenhuma das dezenas de vezes que o li. Corrijo-o e reenvio escrevendo no assunto do email “versão definitiva”. Suspiro de alívio.

Agora, sim. Releio, desta vez, por prazer, livre de pressão. Ai, uma repetição de palavras. Volto a editar, torno a enviar o email, a “versão definitiva, final, finalíssima”. O bondoso Vítor, que me perdoa sempre, recebe as sucessivas e por vezes intermináveis versões definitivas das crónicas como uma mãe recebe os filhos, mesmo que cheguem tarde a casa. Depois de impresso, o jornal segue para as bancas e chega às mãos dos leitores.

Como é que um cronista sobrevive a um bloqueio criativo? Não sobrevive, meus senhores. Um cronista auto-flagela-se e deixa-se morrer chicoteado pelos próprios pensamentos enquanto o resto do mundo dorme o sono dos justos, sem dar por nada. Um cronista sofre, atormenta-se, angustia-se e ainda assim não deixa de escrever.

Se alguma vez se cruzar com um cronista, chegue-lhe uma cadeira, estenda-lhe uma manta para os pés. Enfim, cuide dele com esmero. Ele merece, garanto. E nunca, mas nunca, lhe pergunte sobre o que será a sua próxima crónica.

O arcano Valete de Ouros ensina-nos que plantando, tudo dá. Havendo honestidade e dedicação, chegamos lá. Como um texto que um qualquer cronista se dispõe a escrever — e escreve —, mesmo sem saber por onde começar.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1675
Foto: WikiImages, licença CC0

Casimiro


Breve história em três tempos, para leitores ávidos e impacientes.

[Tempo um]
Casimiro era um homem de certa idade.
Tinha uma marreca notável.
Usava sempre um casaco grande.
Nunca casou, embora sonhasse com tal felicidade.
Não se lhe conheceu família.

[Tempo dois]
Um dia, Casimiro morreu.
Oh Casimiro.

[Tempo três]
Então, descobriu-se
que Casimiro não tinha marreca.
O que escondia dentro do casaco grande
eram asas de anjo.

Hazel

Rosa dos Ventos


Desço o ribeiro a baloiçar até ao mar
na canoa do teu abraço.

Beijos ébrios de maresia.
A madressilva dos teus olhos.

Abres estrelas do mar
das tuas mãos frias
no corpo de nevoeiro
perdido na bruma.

Enrolados em tentáculos de vontade
Navega-me em ondas de lençóis brancos
que vão e que vêm,
na maré que enche.

Velas da camisa desfraldadas
lambem o mastro, que se eleva húmido
Afundado no gemido das tábuas
Trémulas, rendidas à tormenta.

Desaguam os cobertores
escorridos aos pés da cama,
Entre as conchas e búzios
da roupa naufragada no chão.

Secreto, o tesouro de colares
Pérolas de leite doce e rubi vermelho
encharcado no marulhar do sémen das ondas.
Suspiras a bonança e o cansaço.

Sou o vento
Tu a rosa
que me sabe as direcções
que me encontra o sentido.

Hazel

Os malmequeres que nos querem bem


Ai o que eu gosto de malmequeres. Reconfortantes e malcheirosos, aparecem todos os anos quando já ninguém espera por eles, no momento em que se perdeu a esperança de que o Inverno vá alguma vez terminar e nos rendemos quebrados pela chuva mole, teimosa e eterna, um regozijo para o bolor que se imiscui pelos roupeiros bafientos e trepa paredes e ânimo.

Junto duas colheres de café solúvel, uma de açafrão e outra de canela em pó. Misturo água quente, mexo e levo aos lábios a velha caneca, fumegante e aromática; tem, por certo, muito mais de trinta anos. Era eu gaiata — foi quase ontem. É a minha caneca preferida.

A minha mãe tinha uma prima que não tomava banho. Poderia chamar-se Vera (prima-Vera), mas era Bárbara o seu nome — e bárbaro o tule odorífico em sua volta, quase visível, quase palpável. Paz à sua alma, já há muitos anos liberta do corpo que raras vezes terá entrado num chuveiro. Não importa, estimávamo-la na mesma.

Sorvo devagar o café-com-açafrão-e-canela na caneca com o desenho do texugo oferecida pela prima Bárbara numa das suas visitas e deixo a música tocar alto como que a exorcizar as últimas sombras nebulosas do Inverno: “A Primavera” de Vivaldi, interpretada pelo violinista Itzhak Perlman.

Era muito boa senhora, mau grado a falta de esmero na higiene pessoal. Os cabelos pintados de azeviche, impecavelmente ordenados com laca, o sorriso sereno e acolhedor, sempre amorosa e paciente. Falava baixinho, a dentadura ficava-lhe larga. Não me consigo lembrar sobre o que conversava, mas recordo a sua generosidade e bondade.

A prima Bárbara nunca avisava quando vinha visitar-nos. Aparecia sempre de surpresa, pela Primavera; como os malmequeres, reconfortantes e malcheirosos. Inesperados rasgos de luz invadem a casa, ou é isto ou é a mistura do açafrão e da canela no café. Olho pela janela e vejo malmequeres lá fora, um espectáculo para a alma oferecido pela Natureza, que escapa à atenção de quem passa. Pouso a caneca vazia e termino a crónica com a alma cheia de pétalas.

O arcano Ás de Paus aparece num súbito e inesperado impulso, como os malmequeres salpicam de luz os campos verdes e encharcados pelas chuvas, inspirando-nos a deixar o Inverno para trás e, junto com ele, as sombras, a indecisão, os receios. Assim, sem mais nem menos; a renovação e a novidade chegam para quem se dispuser a colher os malmequeres.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1673
Foto: Couleur, licença CC0

A Vendedora de Ovos


A SENHORA-GALINHA usa quase sempre o mesmo kispo cor-de-papas-de-aveia, a condizer com o tom das asas das suas galinhas. Roliça e muito baixa, encontro-a sempre sentada em doce pacatez sobre um banquinho que desaparece debaixo das saias, dando a ideia de estar a chocar os ovos que tem para venda.

Ao seu lado, sobre as pedras da calçada, as caixas de madeira cheias de ovos, alguns das suas galinhas, e um ou outro com o carimbo vermelho do aviário, mas quem é que vai reparar.

A tranquilidade de quem já viu muito e por isso sabe que não há penas que valham apoquentarmo-nos com pouco, fá-la esperar pelas clientes, quer chova, quer faça Sol, com o mesmo sorriso reconfortante que lhe ilumina o rosto trigueiro, salpicado por uma constelação de manchas deixadas pelos Verões, beijos de Sol que nunca desaparecem.

O olhar astuto, de quem faz as contas de cabeça com a mesma genica que uma galinha depenica dois grãos de milho, segue-me com atenção à medida que desço as escadinhas da vila de Oeiras pela manhã, sempre apressada como a lebre-das-maravilhas, numa maratona contra os ponteiros do relógio.

Retribui os meus bons-dias, enquanto choca os seus ovos com mansidão. Sei que me lê como a um livro, que percebe quando estou contente ou cabisbaixa. 

Deixo, pois também a leio: naquele vislumbre de breves segundos, sei que miga com paciência o pão velho para fazer papas para as galinhas, que recolhe os ovos com as mãos pequeninas e amorosas, as mesmas que não sabem escrever muito bem, mas sabem amar. Às vezes é dura com as palavras. Mas nem sempre. Há muitos anos que aprendeu a escolher quando falar e quando guardar silêncio, e a manter uma certa reserva com as pessoas. Sei tudo isso sem nunca termos falado — e aposto que ela sabe outro tanto de mim. Ou mais.

A senhora-galinha é a derradeira guardiã dos contos inventados e por inventar, das fábulas das cegonhas e das raposas, das galinhas com dentes, dos coelhos com asas e dos elefantes voadores. 

É por ela que ainda existem ovos de ouro; são exactamente esses que choca sentada em frente ao muro de cimento que não tem cor nem luz, mas que ganha vida e apenas existe por ela estar ali, assim como aquele fragmento de dia é essencial para preservar a doçura trigueira das minhas sardas de menina que um dia serão também manchas da idade, beijos de Sol dados ao longo de muitos Verões — como os seus. Fazemos parte da vida uma da outra. Somos amigas, sem sequer nos conhecermos.

O arcano Três de Copas inspira-nos a encontrar alegria, doçura e amizade ao virar da esquina — e quando não o encontrarmos, talvez porque já escasseiem no mundo (ou porque nem todas as localidades têm a sorte de ter uma senhora-galinha), sejamos nós a levá-lo.

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online
Tarot | Reiki | Regressão | Reprogramação Emocional | Terapia Multidimensional

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1671
Ilustração: Prawny, licença CC0