É preciso ter Tomates


1. Nasceram-me dois tomates. Que orgulhosa fiquei do reluzente e tentador par que se me insurgiu por entre os arbustos viçosos. Todas as manhãs os contemplava com regalo desejando que crescessem mais, mas os velhacos eram de raça pequena.

Acabei por comer um, o outro dei-o ao meu gaiato. Como nunca antes tinha tido tomates, não soube o que fazer quando uma praga de insectos me fez murchar o tomateiro. Rais’parta. Desmoralizada, deitei tudo fora e tirei os tomates da cabeça que, mau grado o sumarento fracasso agrícola, constituíram saborosa e tenrinha aprendizagem.

2. Transviada nos rigores matematicamente exactos e frios dos números, suspirei durante anos pela elasticidade das hipérboles, a delicadeza dos eufemismos e o encanto fantástico das prosopopeias. 

Traí as folhas quadriculadas com os cadernos de linhas quando reuni uma lista das editoras em Portugal. Enviei candidaturas para todas. Foram centenas. Sem qualquer cunha ou experiência comprovada na época; apenas cara-de-pau e a fé de que tinha de haver um lugar para mim no mundo das letras, mesmo que fosse na última fila. Uma editora respondeu. Após traduzir algumas páginas de teste em inglês, recebi o meu primeiro trabalho: realizar a revisão da tradução de um livro inteiro, que concluí antes do prazo previsto. Foi a primeira semente de várias frutas que vim a colher.

3. «Tens de plantar tomates», disse. A minha amiga, incrédula com o inusitado conselho espiritual, continuava a lamentar-se que já não suportava o emprego onde trabalhava há mais de vinte anos (e do qual não saía porque achava que não valia a pena procurar outro). «Devias plantar tomates», insisti. Às vezes, falo por parábolas como o outro hipster barbudo que tornou o esqui aquático um desporto bíblico.

Plantar tomates é uma experiência de valor incalculável pela qual todos deveriam passar. Ora, passo a explicar: é necessário comprar um vaso ou floreira espaçoso. Depois, vários litros de terra. Da boa, claro — não sejam sovinas. Por fim, em qualquer mercado local se pode adquirir por pataca-e-meia um pé de tomateiro para plantar. 

Trazemo-lo para casa e depositamo-lo na terra com amor e esperança, como quem aconchega um bebé nos lençóis. Certificamo-nos que o tomateiro recebe boa luz solar. Regamo-lo frequentemente. Espetamos um pau comprido onde o tomateiro se possa apoiar à medida que for crescendo (homessa, o Quim Barreiros é tolo se não aproveitar esta frase para um dos seus êxitos de Verão.). Cuidamos e vigiamos; os tomates acabarão por nascer.

O arcano Valete de Ouros diz-nos que não podemos ter tomates se não plantarmos tomates, e às vezes é preciso ter tomates para os plantar. Os lamentos não fazem nascer tomates, mas mais razões para lamentar. Plantando, tudo dá. Até os tomates.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1642
Foto: Os próprios, os meus tomates

O Fantasma Cor-de-Rosa


Sentei-me a beberricar uma chávena de café com os meus fantasmas. No rádio toca Cyndi Lauper para distrair a melancolia e lá fora o Sol ondula como uma sereia de fogo por trás de um véu vaporoso de nuvens brancas.

Antes de eu ter nascido, a minha avó herdou da sua prima uma toalha de linho antiga. A dita senhora era referida como “excêntrica”. Vivia sozinha numa casa abafada e silenciosa, morbidamente arrumada; cristalizada no tempo, onde já nem as aranhas faziam teia. As janelas tinham redes para filtrar o atrevimento invasivo dos mosquitos — e da vida.

A única companhia que tinha era o espírito da sua falecida irmã, por isso nunca se sentava a meio do sofá, mas no canto, de forma a que esta pudesse ocupar o espaço que continuava vazio ao seu lado.

O fantasma não foi invejoso. Aguardou pacientemente, com a mansidão de quem sabe que o fim sempre acaba por chegar. A prima Rosa partiu muito velha e totalmente ignorante dos prazeres-de-alcova: virgem. Vestiram-na toda de cor-de-rosa, a cor do seu nome e da feminilidade nunca explorada na carne, como era tradição.

A toalha de linho, com mais de cento e cinquenta anos, passou grande parte da existência guardada como uma relíquia no fundo de um baú com bolas de cânfora, no sótão da casa onde cresci. Ninguém lhe tinha particular afeição. A minha avó não a usou. A minha mãe também não. Ficou reservada para mim, à espera que tivesse idade suficiente para recebê-la.

Sei agora que a prima Rosa não era louca. Apenas via o que os outros não conseguiam vislumbrar por estarem tão apegados à matéria e aos seus egos. Reconforta-me ter sido a sucessora da velha toalha de linho e talvez de alguma da sua excentricidade.

Não me incomodam os fantasmas. Vejo-os sentados à mesa a observarem-me em silêncio, testemunhas de uma vida que aprendeu resignadamente a aceitar as ausências. A música toca alto na cozinha para eu ter a certeza que não sou também um fantasma.

Seria divertido poder dizer que a toalha de linho está assombrada e muda de lugar durante a noite, mas nunca aconteceu. Tive-a por muito tempo sobre a minha secretária, onde tantas vezes lanço as cartas de Tarot, abrindo o livro da vida, para mim e para os outros. Há uns meses, guardei-a no fundo de uma gaveta, onde talvez repouse por uns cinquenta anos à espera da sua sucessora que um dia nascerá, daqui a duas gerações.

O arcano Dez de Espadas vagueia à nossa volta como um fantasma misterioso, soprando no vazio que todas as almas transportam, reclamando um lugar para se sentar ao nosso lado. Não devemos deixar que os nossos fantasmas fiquem por muito tempo — ou corremos o risco de encontrar redes nas nossas janelas a filtrar-nos a vida e o ar novo.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1641
Foto: junko, licença CC0

A Ratinha


Lá vai a Ratinha toda espevitada. Viram-se cabeças à sua passagem, desviam-se os prédios meio decrépitos, inclinam-se os degraus da Bica, debruçam-se os candeeiros da rua. Não há quem não se espante ao vê-la, tão viva e airosa.

O Elias do talho conhece-a bem, esse magano, assim como a Virgínia florista que nunca mais recuperou do susto quando lhe entrou na loja para elogiar o esmero com que esta lhe tinha composto o arranjo de coroas imperiais.

À sua maneira, a Ratinha é uma lenda viva que um dia foi uma vizinha comum, como tantas outras; baixinha e bombástica como uma pequena mulher-nitroglicerina, sempre com a ponta do lenço a espreitar do bolso para limpar o ranho à canalha, as mãos calejadas de tantas escadas varrer e a preocupação diária de ter o jantar do marido pronto a horas.

Sofria dos nervos e de pés chatos. Pelava-se por grão com mão-de-vaca. Não ela, o marido. E não podia ser grão de lata, tinha que ser do outro, o raio do homem era minhoquinhas. A boa Ratinha, que na época era chamada pelo seu nome de nascimento, o qual nem eu nem ninguém já se lembra, pôs o grão a cozer na panela-de-pressão, danada com a vida, com os pés, com a vizinha do rés-do-chão-esquerdo e com o gaiato do meio que tinha arranjado chatices na escola.

A pressão da panela subia e o crescendo do apito ia acompanhando os seus gritos que se ouviam ao fundo da rua. O miúdo saiu cabisbaixo depois do ralhete e a Ratinha voltou a entrar na cozinha no fatídico momento em que uma pele de grão entupiu o pipo da panela, a pressão acumulou até ao limite e CABUM!, deu-se uma violenta explosão de grão, molho a ferver e pedaços de mão de vaca que voavam em todas as direcções. Foi fatal para a Ratinha. Parou-lhe o coração.

O funeral foi igual a tantos outros. O padre celebrou as Exéquias, as vizinhas choraram com gosto, os gaiatos estavam inconsoláveis e o Elias do talho, que sempre fora seu admirador, depositou uma coroa de rosas-cor-de-rosa escandalosa e denunciadoramente maior que as restantes, mas já nada disso importava.

Eis que era chegado o momento rude e frio de se atirar com uma pá de cal antes de fechar a tampa do caixão. Assim que a cal lhe cai em cima do rosto lívido, a Ratinha dá um salto do caixão como se tivesse acabado de receber a descarga eléctrica de um relâmpago, para grande horror de todos.

Ficou com os olhos mirrados e arrepanhados, pequeninos como os de um rato, queimados pela cal, mas estava mais viva e satisfeita que nunca. Quem lá estava, não esqueceu; muitos nem pregaram olho nessa noite. Saiu a cambalear do cemitério, directa para casa e a primeira coisa que fez foi atirar com o que restava da panela de pressão pela janela. Nunca mais se enervou, nunca mais se comeu grão naquela casa.

O arcano Dez de Paus alerta-nos para as panelas de pressão que ameaçam explodir a qualquer momento, esgotando-nos a paciência, a energia e o tempo. Porque nem todos podem ter a sorte da Ratinha, é mais sensato respirar fundo, descomprimir, e o resto que espere.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1640
Foto: Leroy_Skalstad, licença CC0

A Caixa de Música


Cravei a faca de um dos lados e torci-a para a frente e para trás até destruir sem remorsos a caixa de música. A pequena e delicada bailarina que rodopiava como Terpsícore, a musa, caiu para o chão na sua lividez de plástico sem vida, desabitada de alma e de calor. Voltei a enfiar a ponta da faca e desencaixei o mecanismo que tocava “Speak softly love” da saga “O Padrinho”, que guardei no bolso como um tesouro.

O Domingos era um homem peculiar, excêntrico, uma criança de humores voláteis e efusivos num corpo adulto, enorme e espaçoso como um Buda (nem sempre) sorridente. Mau grado o seu temperamento irascível, recebia-me sempre com um afecto e uma alegria que me faziam estalar as costelas no seu abraço exagerado, sentido e cilíndrico.

Os livros amontoavam-se nas prateleiras. Romances, poesia, ficção científica, erotismo, ocultismo, até mesmo pornografia. Não havia assuntos tabu, tudo era legítimo, digno de existir, intocado pela peneira da moral e da hipocrisia. No armário de portas de vidro, os bibelots inúteis acumulavam-se às dezenas: os patinhos de porcelana, as nossas-senhoras-de-Fátima, chávenas de chá desirmanadas, amuletos exóticos, toda uma série de quinquilharia que coleccionava, incluindo uma estatueta do Diabo.

«Mas, se reparares, estão todos de frente 
para dentro de casa, 
só o Diabo é que está virado lá para fora, 
para o lado da janela», e ria-se com satisfação. 

As suas histórias de fantasmas e outros assombros nunca me cansavam, e ele deleitava-se por ter quem lhas escutasse com o mesmo prazer que as contava. Gabava-se que, quando novo, era forte como um touro, corajoso e — espante-se — pouco modesto. Fazia apostas com os amigos que o levavam a atravessar o cemitério de uma ponta à outra pela calada da noite.

Numa dessas brincadeiras, desafiaram-no a derrubar a porta de uma casa assombrada onde ninguém conseguia entrar. De lanterna em punho, deu-lhe vários encontrões sem que esta cedesse. Na derradeira investida, a porta abriu-se abruptamente e o bom Domingos estatelou-se no chão da casa.

A lanterna apagou-se — e não tornou a acender. Se tinha entrado em grande velocidade, mais depressa ainda se pôs ao largo, e acabaram-se ali as apostas. Ria-se muito. Nunca soube se estas histórias foram mesmo vividas ou produto do seu sentido de humor que fazia as delícias do meu. Que importa.

Escondida à entrada da enfermaria, com receio que alguém me visse suspensa entre o choque e a fragilidade, observei ao longe o que restava do meu amigo. Respirei fundo e acabei por entrar em silêncio, mal tocando com os pés no chão. Conversámos sobre banalidades. A comida era má. O que caía bem era um copo de vinho branco. As enfermeiras eram simpáticas. «Gosto muito de si, Senhor Domingos, sabe disso, não sabe?», «Lá estás tu, o Senhor está no céu».

Meti a mão ao bolso e retirei o mecanismo da caixa de música, «para pôr a tocar quando vier a noite, se se sentir sozinho.» Olhámo-nos com tristeza. Sabíamos que nunca mais nos veríamos. Nessa noite, quando já estava deitada, ouvi a música tocar dentro de mim. Soube que ele estava a escutá-la naquele momento. No dia seguinte, partiu. Nunca mais tive uma caixa de música. Nunca mais tive um amigo assim.

O arcano Cinco de Copas ensina-nos que, apesar de todas as perdas que nos vão despedaçando ao longo da vida, não temos o direito de parar. A melhor forma de honrar os momentos bons é recordá-los com amor e dar-lhes continuidade em nós, com o que nos resta. Mesmo que tenhamos de terminar de escrever uma crónica a sorrir e a chorar ao mesmo tempo.

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1639
Fotos: Luiz-Jorge-Artista e 422737, licença CC0