A Ratinha

quinta-feira, julho 13, 2017


Lá vai a Ratinha toda espevitada. Viram-se cabeças à sua passagem, desviam-se os prédios meio decrépitos, inclinam-se os degraus da Bica, debruçam-se os candeeiros da rua. Não há quem não se espante ao vê-la, tão viva e airosa.

O Elias do talho conhece-a bem, esse magano, assim como a Virgínia florista que nunca mais recuperou do susto quando lhe entrou na loja para elogiar o esmero com que esta lhe tinha composto o arranjo de coroas imperiais.

À sua maneira, a Ratinha é uma lenda viva que um dia foi uma vizinha comum, como tantas outras; baixinha e bombástica como uma pequena mulher-nitroglicerina, sempre com a ponta do lenço a espreitar do bolso para limpar o ranho à canalha, as mãos calejadas de tantas escadas varrer e a preocupação diária de ter o jantar do marido pronto a horas.

Sofria dos nervos e de pés chatos. Pelava-se por grão com mão-de-vaca. Não ela, o marido. E não podia ser grão de lata, tinha que ser do outro, o raio do homem era minhoquinhas. A boa Ratinha, que na época era chamada pelo seu nome de nascimento, o qual nem eu nem ninguém já se lembra, pôs o grão a cozer na panela-de-pressão, danada com a vida, com os pés, com a vizinha do rés-do-chão-esquerdo e com o gaiato do meio que tinha arranjado chatices na escola.

A pressão da panela subia e o crescendo do apito ia acompanhando os seus gritos que se ouviam ao fundo da rua. O miúdo saiu cabisbaixo depois do ralhete e a Ratinha voltou a entrar na cozinha no fatídico momento em que uma pele de grão entupiu o pipo da panela, a pressão acumulou até ao limite e CABUM!, deu-se uma violenta explosão de grão, molho a ferver e pedaços de mão de vaca que voavam em todas as direcções. Foi fatal para a Ratinha. Parou-lhe o coração.

O funeral foi igual a tantos outros. O padre celebrou as Exéquias, as vizinhas choraram com gosto, os gaiatos estavam inconsoláveis e o Elias do talho, que sempre fora seu admirador, depositou uma coroa de rosas-cor-de-rosa escandalosa e denunciadoramente maior que as restantes, mas já nada disso importava.

Eis que era chegado o momento rude e frio de se atirar com uma pá de cal antes de fechar a tampa do caixão. Assim que a cal lhe cai em cima do rosto lívido, a Ratinha dá um salto do caixão como se tivesse acabado de receber a descarga eléctrica de um relâmpago, para grande horror de todos.

Ficou com os olhos mirrados e arrepanhados, pequeninos como os de um rato, queimados pela cal, mas estava mais viva e satisfeita que nunca. Quem lá estava, não esqueceu; muitos nem pregaram olho nessa noite. Saiu a cambalear do cemitério, directa para casa e a primeira coisa que fez foi atirar com o que restava da panela de pressão pela janela. Nunca mais se enervou, nunca mais se comeu grão naquela casa.

O arcano Dez de Paus alerta-nos para as panelas de pressão que ameaçam explodir a qualquer momento, esgotando-nos a paciência, a energia e o tempo. Porque nem todos podem ter a sorte da Ratinha, é mais sensato respirar fundo, descomprimir, e o resto que espere.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1640
Foto: Leroy_Skalstad, licença CC0

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