O Fantasma Cor-de-Rosa

quinta-feira, julho 20, 2017


Sentei-me a beberricar uma chávena de café com os meus fantasmas. No rádio toca Cyndi Lauper para distrair a melancolia e lá fora o Sol ondula como uma sereia de fogo por trás de um véu vaporoso de nuvens brancas.

Antes de eu ter nascido, a minha avó herdou da sua prima uma toalha de linho antiga. A dita senhora era referida como “excêntrica”. Vivia sozinha numa casa abafada e silenciosa, morbidamente arrumada; cristalizada no tempo, onde já nem as aranhas faziam teia. As janelas tinham redes para filtrar o atrevimento invasivo dos mosquitos — e da vida.

A única companhia que tinha era o espírito da sua falecida irmã, por isso nunca se sentava a meio do sofá, mas no canto, de forma a que esta pudesse ocupar o espaço que continuava vazio ao seu lado.

O fantasma não foi invejoso. Aguardou pacientemente, com a mansidão de quem sabe que o fim sempre acaba por chegar. A prima Rosa partiu muito velha e totalmente ignorante dos prazeres-de-alcova: virgem. Vestiram-na toda de cor-de-rosa, a cor do seu nome e da feminilidade nunca explorada na carne, como era tradição.

A toalha de linho, com mais de cento e cinquenta anos, passou grande parte da existência guardada como uma relíquia no fundo de um baú com bolas de cânfora, no sótão da casa onde cresci. Ninguém lhe tinha particular afeição. A minha avó não a usou. A minha mãe também não. Ficou reservada para mim, à espera que tivesse idade suficiente para recebê-la.

Sei agora que a prima Rosa não era louca. Apenas via o que os outros não conseguiam vislumbrar por estarem tão apegados à matéria e aos seus egos. Reconforta-me ter sido a sucessora da velha toalha de linho e talvez de alguma da sua excentricidade.

Não me incomodam os fantasmas. Vejo-os sentados à mesa a observarem-me em silêncio, testemunhas de uma vida que aprendeu resignadamente a aceitar as ausências. A música toca alto na cozinha para eu ter a certeza que não sou também um fantasma.

Seria divertido poder dizer que a toalha de linho está assombrada e muda de lugar durante a noite, mas nunca aconteceu. Tive-a por muito tempo sobre a minha secretária, onde tantas vezes lanço as cartas de Tarot, abrindo o livro da vida, para mim e para os outros. Há uns meses, guardei-a no fundo de uma gaveta, onde talvez repouse por uns cinquenta anos à espera da sua sucessora que um dia nascerá, daqui a duas gerações.

O arcano Dez de Espadas vagueia à nossa volta como um fantasma misterioso, soprando no vazio que todas as almas transportam, reclamando um lugar para se sentar ao nosso lado. Não devemos deixar que os nossos fantasmas fiquem por muito tempo — ou corremos o risco de encontrar redes nas nossas janelas a filtrar-nos a vida e o ar novo.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1641
Foto: junko, licença CC0

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