O Vazio


A campainha está a tocar, vou ali abrir a porta: são os senhores que vêm instalar um contador bi-horário. Façam favor de entrar, é por aqui. Diz que é raro terem pedidos destes, que os últimos contadores do género foram instalados há muitos anos num mosteiro perdido no nevoeiro lá para as bandas do Nepal.

Hoje em dia toda a gente anda sempre ocupada com alguma coisa e as horas de vazio não despertam o interesse de ninguém, esclarece o sujeito mais alto enquanto ajuda o colega a tirar o contador bi-horário da caixa.

Isso não é de hoje, afianço-lhes. Senão, vejamos: antigamente, quando as pessoas iam à casa-de-banho, liam de-fio-a-pavio os rótulos dos frascos de shampô, do gel de banho, do ambientador; havia os que se entretinham com livros de banda-desenhada, com a literatura médica de alguma caixa de comprimidos que se encontrasse por perto — no fundo, tudo o que estivesse no perímetro de um braço estendido em torno do trono.

Hoje levam o telemóvel, a partir de onde enviam emails, sms, partilham fotografias, não perdem pitada das polémicas do dia nas redes sociais —, como quem depende de um fio invisível que o agarre ao mundo cá fora.

Sempre houve a necessidade de ter alguma âncora onde se possa prender a atenção — e que salve a Humanidade, apavorada com a perspectiva do vazio, de se deparar com ele. Assim, olhamos para fora — e nunca para dentro.

Ora bem, já está instalado o contador bi-horário. Só uma assinatura aqui em baixo, menina Hazel, se faz favor. Obrigado e um bom dia.

Fecho a porta satisfeita com o contador bi-horário novinho em folha instalado mesmo em cima da minha cabeça. Tudo para poupar, que o valor da energia anda pela hora da morte.

Planeio usufruir de uma hora de tarifa de vazio uma vez por semana. Sessenta minutos de telemóvel e computador desligados (não referi televisão porque não tenho) e, sem gente a atazanar-me o juízo, pretendo sentar-me e ficar dignamente a olhar no vazio.

Uma hora que, conto, será muito produtiva, pois, em vez de despender energia em tudo e todos, estarei a recarregá-la (sem perigo de electrocussão caso me distraia e entre em sobredosagem se deixar passar mais um quarto-de-hora ou pedaço de tempo que me valha).

Perscrutar o vazio em absoluta ausência de emoções pode parecer o equivalente a contemplar o abismo vertiginoso ou um poço sem fundo, mas há pouco espreitei para lá e pareceu-me seguro e arejado.

Confrontá-lo não me fez sentir vazia, mas preenchida, centrada. Capaz de reclamar todos os pedaços de mim que perdi por aí em angústias e preocupações, em mágoas e excessos de paixão, em dar mais do que recebi, em esperar e desesperar, em imaginar e desimaginar.

Reclamo-os e reintegro-os no meu vazio, no silêncio e na solidão, na paz absoluta.
Só então voltarei à tarifa de fora de vazio.

O arcano O Eremita envia notícias para o mundo através de um pombo-correio que pousou na minha janela. Trazia na pata uma mensagem que desenrolei com cuidado. Estava vazia.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1683

Sabes que estás a ficar velho quando


Esta dor que hoje me tem apoquentado a zona fronteiriça entre o fundo das costas e o começo das nádegas concebe previsões meteorológicas com maior exactidão que o ido Anthímio de Azevedo. Amanhã vai estar fresco, algumas nuvens e o Sol vai andar acabrunhado, diz-me.

Tenho conversado com ela; todas as dores vêm para ensinar e quanto mais depressa aprender a lição, mais asinha a mestra parte em busca de novo pupilo. É uma dor velha, muito idosa, que veio visitar-me por um dia — amanhã diz que já se vai embora.

Ofereceu-se para me ensinar a fazer crochet, renda-de-bilros e bordado em ponto-cruz. Declinei cordialmente o obséquio, não fosse ela tornar-se hóspede permanente.

Vencida e de malas aviadas para partir pela calada da noite, enquanto durmo o sono dos justos de pijama-às-riscas e cabelo entrançado, a velha dor deixou-me de presente a sabedoria dos ditados populares, essas verdades-indiscutíveis-e-cientificamente-provadas que tenho dado por mim a dizer aos mais novos.

Foi neste momento que me descobri velha como uma relíquia empoeirada de museu, hortaliça murcha, par de botas fedorentas que já palmilharam meio mundo e sabem todos os atalhos, caminhos e azinhagas.

Como sou uma boa velhaca, descobri que este mal é contagioso: começa-se a memorizar provérbios e depois passamo-los aos outros sem apelo nem agravo. Como a maleita proverbial tem andado em recessão (quem é que os cita hoje em dia?), resolvi disseminá-la em grande escala. Ora tomem disto:

— Depois do Natal, dá o dia um saltinho de pardal.

— Calças brancas em Janeiro, sinal de pouco dinheiro.

— No mês de Janeiro sobe ao outeiro para ver o nevoeiro.

— Janeiro fora, cresce o dia uma hora.

— Fevereiro engana a velha ao soalheiro.

— Em Fevereiro, salto de carneiro.

— Fevereiro quente traz o diabo no ventre.

— Março, marçagão, de manhã é Inverno e à tarde Verão.

— Em Março sobe ao outeiro, se vires verdejar, põe-te a chorar, se vires nevar, põe-te a cantar.

— Páscoa em Março, ou fome ou mortaço.

— Março, marçagão, de manhã cara de gato, à tarde cara de cão.

— Abril, águas mil, coadas por um mandil.

— Em Março tanto durmo como faço.

— Abril frio e molhado, enche a tulha e farta o gado.

— Uma água de Maio e três de Abril, valem por mil.

— Em Maio, cereja ao borralho.

— Água de Maio, pão para todo o ano.

— Em Maio, canta o gaio.

— Maio claro e ventoso, faz o ano rendoso.

— O que Janeiro deixa nado, Maio deixa espigado.

— Agosto, mês de desgosto.

— Não há Sábado sem sol, Domingo sem missa nem Segunda sem preguiça.

— A velha que bem governou, o melhor tição para Maio o deixou.

— Em Agosto todo o fruto tem o seu gosto.

— Uma andorinha não faz o Verão.

— Em Agosto frio no rosto.

— Em Dezembro descansar para em Janeiro trabalhar.

O arcano A Sacerdotisa inspira-nos a virar as páginas do tempo, a fazer uso da sabedoria que adquirimos e a nutri-la discreta e incessantemente, numa gestação silenciosa. Sabemos sempre a resposta que precisamos, mesmo quando achamos que não. Basta escutar o que as nossas dores têm para ensinar.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1682
Foto: geralt, licença CC0

"Segure-me aqui a Língua desta Menina."


Foi na Primavera tensa de mil-nove-e-noventa-e-nove que uma malfadada espinha de carapau me escorregou através da glote e se espetou bem lá no fundo da garganta.

(Se é sensível a descrições de teor visceral, não leia mais. Embora haja piores.)

Tentei tossir, mas não saiu. Comi pedaços de pão inteiro, na esperança de empurrá-la aparelho digestivo abaixo, e-depois-logo-se-via (tentando desviar a memória daquela tia-avó que um dia foi parar ao Hospital com uma espinha de bacalhau atravessada no reto). — Nada.

Deitei-me desejando que a espinha demoníaca desaparecesse milagrosamente e tudo não tivesse passado de um sonho menos bom quando acordasse. A manhã chegou e, com ela — a facínora. Tomei duche com a espinha. Vesti-me com a espinha. Fui trabalhar com a espinha. Ao fim do dia, dei-me por vencida. Fui ao Hospital.

A funcionária da entrada parecia farejar algo embaraçoso no motivo da minha ida às Urgências, a avaliar pelo meu aspecto saudável e ao mesmo tempo inegavelmente acanhado. Não, não tinha objectos entalados nas cavidades vaginal nem anal (apre!).

Tenho uma espinha espetada na garganta — sussurrei.
Tem o quê? — rosnava a redonda senhora com olhos maliciosos, de dentro do guichet. A fina arte da velhacaria consiste em fazerem-nos repetir em bom som, numa sala cheia de pessoas atentas, o motivo do nosso embaraço.

TENHO UMA ESPINHA ESPETADA NA GARGANTA — respondi, agora alto, para deleite da curiosidade mórbida que me rodeava.

Fui atendida pelo Otorrinolaringologista, um sujeito de bigode fininho, calma anestésica e paciência infinita, que espreitou cá para dentro decidindo mentalmente que instrumentos (de tortura) iria utilizar. Chamou o enfermeiro:

— Segure-me aqui a língua desta menina.

O jovem enfermeiro arrepanhou-me a língua enquanto o médico segurava uma pinça suficientemente grande para agarrar a parte mais larga da tromba de um elefante.

Conforme a pinça zoológica abria caminho goela abaixo, constatei no quão parecidos os humanos podem ser com os gatos em espasmos pré-vómito. Julguei que fosse vomitar na cara do enfermeiro que me continuava a esticar a língua como se fosse a passadeira vermelha dos Óscares.

Foram várias as investidas para chegar à espinha. As lágrimas escorriam-me pelos cantos dos olhos, enquanto tentava encontrar algum lado positivo naquilo, “vai que tinha ficado espetada à saída”.

Por fim, a super-mega-pinça caçou a diaba. Depois de tanto tempo enterrada nas minhas carnes tenrinhas e indefesas, esperava uma espinha gigante. Tinha menos de um centímetro. Muito pequenina. Mas velhaca, bem velhaca, a danada.

Ainda olho os carapaus com um desprezo que mais ninguém entende, a não ser a minha glote, que ainda guarda memórias funestas.

O arcano Cavaleiro de Paus recorda-nos que nada é definitivo. Em particular, quando se trata de algo que sabemos não pertencer onde está. É sempre melhor moderar os impulsos e degustar os prazeres da vida com algum cuidado.

Tudo o que não se encontra na sua devida natureza, mais tarde ou mais cedo acabará por partir. Restam as experiências vividas, a aprendizagem e o desapego.

A sentir-me um autêntico carapau-de-corrida,

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1681

A Página Cento-e-Oito


Entrou pela janela ao fim da tarde, lançada por uma rabanada de vento que derrubou o porta-retratos. Os olhos do gato, que acordou assarapantado, seguiram a queda lenta até aos meus pés de uma folha que se enrolou sobre si como as rosas-de-Jericó quando rolam pelas areias quentes do deserto.

Tentei atirá-la pela janela, mas os zéfiros sopraram-na de volta, contra o meu peito. Está bem, fico contigo. Deixei-a cair com displicência sobre a mesa de onde vos escrevo, entre o dicionário de português forrado a tecido cor de poeira e o candeeiro antiquado de quebra-luz verde-duende.

Fui dar com ela no chão, indiferente à doçura do crepúsculo matutino, amuada como donzela desprezada. O orvalho nos seus veios escorreu até ser gota e espelhou o meu olhar, como se um olho sem vida me observasse. Estava amarfanhada, claramente contrariada. Perguntei se preferia ser esticada e colocada como marcador de livros.

Como se pressentisse o ultraje, a folha rodopiou para fora das minhas mãos numa valsa exaltada e dramática. Baixei-me para a agarrar e voltou a escapulir-se como um pardal, fazendo-me persegui-la, ora acocorada, ora de pé.

Anda cá, se te apanho vais parar dentro de uma moldura de vidro 
e ficas para sempre esparramada num quadro para o qual ninguém vai olhar.

A folha-donzela voou com ímpeto suicida pela janela, mas foi salva pelo bailado fantasmagórico das cortinas brancas. Aconcheguei-a entre as mãos como um passarinho assustado e coloquei-a respeitosamente sobre os livros, na estante da sala, para que tivesse tempo de se recompor — antevendo que acabaria por reaparecer noutro lugar como obra de alguma assombração.

Passei essa noite a sonhar com o rangido das florestas, árvores que se abraçavam umas às outras de ramos estendidos e vozes de velhas cansadas que falavam através dos vendavais.

Acordei com a roupa da cama caída no chão, sentindo-me nua e observada. Era ela.
A folha. Na minha mesa-de-cabeceira. Tive a clara percepção que os sonhos que sonhei não eram meus, mas dela, memórias da floresta. Desfazendo-me das teias oníricas, disse-lhe bom dia e saí para trabalhar.

Quando regressei, já não se encontrava ali. Procurei-a por toda a casa sem sucesso. Senti um vazio pela sua ausência, uma tristeza difícil de explicar, a que acabei por me acostumar com o tempo — como um tempero que impede a alegria em excesso de se tornar ofensiva e imoral.

Mal me lembrava da folha até regressar a Primavera, quando reorganizei os livros nas estantes para espantar as energias invernosas. Eis então que a encontrei: enamorada da página cento e oito de “Amor de Perdição”, o papel já tatuado pelos seus veios. Camilo Castelo Branco teria compreendido tamanha devoção.

O arcano Cavaleiro de Copas sussurra-nos levemente ao ouvido, inspirando-nos a nunca deixar de procurar o caminho do amor.

Fechei o livro com delicadeza, sem retirar a folha e arrumei-o entre “A Relíquia” e “A Correspondência de Fradique Mendes” (para que o fino humor queirosiano aligeire a trágica perdição camiliana).

Jamais suspeitaria que ela fora uma mulher — que, de tanto chorar por um desgosto de amor, ficou seca, mirrada — transformada numa folha. Ficaria de coração partido se alguém me dissesse que as misteriosas e inexplicáveis gotas de orvalho eram reservas de lágrimas esquecidas dentro dos seus veios. Não importa.
Agora sorri, perdida de amores pela página cento e oito. Moram uma na outra.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1680
foto:  kellepics, licença CC0

41 anos!


O ponto de exclamação no título é como uma palmadinha de consolação no meu próprio ombro. Quarenta ainda vá, mas quarenta — e! — um. Valham-me os Deuses.

Este foi um ano de morte, de renascimento e de um grande salto de fé.
Apaixonei-me, casei, mudei de nome, continuei a escrever, a trabalhar naquilo que gosto e com quem gosto, a dançar, a fazer fotografias e a ver o meu filho ficar mais alto que eu.

Reencontrei amigos, fiz novos amigos e tenho que concluir que foi um ano algo rocambolesco, mas feliz.

E agora vou trabalhar! Hoje é dia de aula, desculpem escrever este post assim à pressa.
Estou no Espaço S, em Oeiras, a fazer aquilo que mais gosto: ensinar.

Obrigada aos que ainda me acompanham.

Até breve!

Hazel

Foto: pelo grande Mário Pires - Retorta!

Bilhete de Ida


Está decidido. Já anotei nos alfarrábios estrelares quanto tempo vou querer viver. Que alívio isso me trouxe, por Láquesis!

De-agora-em-diante (quase escrevia ‘doravante’, mas encontrei a palavra cheia de pó por falta de uso, assim engavetei-a embaraçadamente neste parêntesis), não darei um passo sem que a terra se sinta beijada com sacralidade pelos meus pés.

As janelas de cada olhar serão diariamente abertas com cortinas diáfanas de contemplação. Cada gesto será desenhado com graça e musicalidade. Cada abraço uma torrente de amor no envelope de dois peitos que se colam.

Nada poderá ser em vão. Não pode haver desperdício. Sem talento algum particular que me seja fecundo, seja eu arte. Que seja pelo amor, pela sabedoria, pelo prazer.
No mínimo, pela beleza.

É certo que o incerto pode intrometer-se pelo meio e abrir um atalho mais cedo que o esperado. Não há quem seja imune às tropelias do acaso. Porém, tal não me detém nem distrai — pelo contrário — apenas me impele na viagem.

Afinal, ninguém está a salvo de lhe cair um piano em cima ao sair de casa. Ou de um elefante obstinado e fatídico se sentar sobre si recusando-se terminantemente a levantar. Se acontecer, logo-se-vê.

Para todos os efeitos, está tudo planeado. Tenho o bilhete comprado, as malas feitas e embarco no comboio. Não há tempo a perder.

Procuro no bolso do casaco um lenço branco com alguns macaquitos do nariz que ninguém repara visto de longe para vos acenar em despedida. Os que me querem bem, não lamentem a minha partida.

Aqueles com quem de alguma forma falhei, aceitem as minhas sinceras desculpas. Se não quiserem aceitar, desculpem não poder ficar a desculpar-me para sempre, mas tenho um comboio para apanhar. Os que pensam mal de mim, regozijem-se por me verem pelas costas e não reclamem mais. Está tudo bem, está tudo certo. Estão todos perdoados. Agora vou.

O arcano Valete de Paus desafia-nos a ousar o extraordinário e a fazer planos impossíveis de garantir. Não é, afinal, toda a existência um plano impossível?

A natureza de tudo é a impermanência, a inexistência de garantia, o risco contínuo — e a paixão por acreditar na eternidade, ainda assim. Já nascemos com um bilhete para não-sei-onde e depois logo-se-vê. Apenas estou a usar o meu.

Muitas graças por tudo. O tchuque-tchuque do comboio anuncia a partida.
Vou-me embora, embora continue cá.

Contudo, acreditem, creiam-me: ainda que me vejam, que me escutem (id est, leiam) e que me toquem — já não estou mais aqui. Fui.

Até à vista!

Hazel
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Marcação: casa.claridade@gmail.com

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1679
Foto: xunseru, licença CC0