Procuram-se Rebeldes em 2021


APESAR DOS AUGÚRIOS dos profetas-do-fim-dos-tempos que nos despertam aquele irresistível medo fascinado (ou fascínio amedrontado) capaz de fazer eriçar os pelinhos nos braços e no pescoço, terei de vos desiludir: 

Ainda não será em 2021 o fim da Humanidade. 

Se falhasse esta previsão também não estaria cá para ouvir reclamações, podeis afirmar, e com razão. Mas a verdade é que ainda vamos ter que nos aturar uns aos outros por muito tempo. E que bom é. 

Quem está vivo, a lidar com os problemas que tem, e a antecipar os que não tem através da fina arte masoquista da preocupação, está cheio de sorte.

O virar de página nos nossos calendários trar-nos-á, contudo, um ano de contra-sensos:

Estaremos gratos por estar vivos, mas em vez de sentirmos alívio pela superação da pandemia e das crises pessoais e colectivas, estar vivo parece ser causa da fonte de preocupações que nos provoca medo de viver.

PREVALECERÁ O MEDO (do COVID e de outras variações que surgirão entretanto), o medo de tomar decisões, o medo de gastar dinheiro que poderá mais tarde fazer falta, o medo de viajar, o medo do desconhecido, o medo do medo. 

O estado de sobressalto que transportamos de 2020 programou-nos a estar à espera do pior. Como se, se o pior viesse, fosse até um alívio para todos. E nenhum de nós vislumbra que o pior que nos pode acontecer é passar pela vida e não viver.

Teremos várias dimensões de realidade a operar em simultâneo; uma, aquilo que julgamos ser a verdade, porém, é-nos “instalado” através dos meios de comunicação social. Outra, aquilo que será o impacto directo e indirecto da nossa forma condicionada de ver e de agir. Outra ainda, as várias dinâmicas que realmente estarão a ocorrer.

AFASTADOS UNS DOS OUTROS por um longo período de tempo, desconfiados até de um espirro inofensivo como no tempo da Peste, com o vazio trazido pela perda de identidade individual e colectiva devido ao rosto tapado e inexpressivo, estaremos perante uma fase de quebra generalizada na confiança em nós mesmos, na vida, no futuro.

Haverá, assim, um enfraquecimento no questionamento das informações que nos são transmitidas. Seja por excesso de repetição, por pressão social, devido ao isolamento que marcou 2020, ou pelo impacto na economia e consequente sentimento de vulnerabilidade. Os rebeldes estarão cada vez mais ordeiros, o que é uma perda irreparável para a Humanidade, que sempre avançou graças aos que não se conformaram.

Teremos todas as condições reunidas para a vida avançar, mas aperceber-nos-emos realmente disso? Nada nos faltará em 2021 a não ser a ousadia de agarrar a vida pelos colarinhos, de arriscar a pele.

Como se tivéssemos acabado de sair de uma guerra, iremos avaliar cada passo antes de avançar, sempre na zona de segurança porque-nunca-se-sabe. A Humanidade estará meio morta mesmo estando viva, com a Natureza a espreitar-nos à janela, e hesitante em tomar parte no milagre que está a acontecer.

Claro que todos corremos o risco de morrer de COVID. Ou de qualquer outra maleita, acidente, catástrofe natural, de velhice ou por causas misteriosas. O que deveria servir de incentivo para abraçar a magia que é estarmos vivos parece ser, na verdade, um impedimento à vida. 

E não viver por medo de morrer é uma negação da própria vida.

O MEDO, QUANDO DOMINA, recria a paralisia da morte. É um travão da vida — mas não do tempo. O tempo, esse vilão sem coração, não espera que ganhemos coragem ou que prestemos atenção à sua passagem. Nem o Sol, nem a Lua, a chuva, as estações do ano, as andorinhas que voltam na Primavera e que partem após o fim do Estio. Tudo está como deve estar, a decorrer normalmente, e assim continuará, quer tomemos ou não parte da vida e dos seus ciclos.

2021 será um ano maravilhoso, cheio de novas oportunidades. Felizes os que não tiverem perdido a ousadia de viver, os rebeldes, os que arriscarem novos caminhos. 

A normalidade nunca será reposta — e ainda bem. Pois estar dentro do que é “normal” é seguir uma norma que outros definiram, encaixando-nos, formatados, normalizados, resignados, numa forma que moldaram para nós. É não questionar, e abdicar do infinito mundo de possibilidades que se encontra disponível para além das fronteiras da ‘normalidade’.

O primeiro semestre será ainda um período de recuperação do trauma deixado pela mudança de paradigma no ano 2020. Vamos precisar de tempo para voltar a confiar na vida, em nós mesmos, uns nos outros, e no desconhecido que nos espera. Mas muitos vão conseguir.

O uso de máscara será gradualmente facultativo e as novas vacinas irão dar que falar. O regresso dos eventos com público, como concertos, espectáculos e outros similares, retornará aos poucos, mas com menor afluência de pessoas. O medo demorará a desaparecer totalmente, até porque já faz parte da Humanidade desde, pelo menos, o Paleolítico Inferior.

O segundo semestre será mais leve e, ainda que a medida de tempo seja igual, os seis meses que encerrarão 2021 fluirão com maior celeridade que os primeiros. Não porque os ponteiros dos relógios avancem mais depressa, mas porque estaremos finalmente a começar a confiar na vida. 

Quem viver, verá.

Hazel
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Foto por: José Cavaco

Janela Aberta para o Mundo


DA MINHA BOCA abriu-se uma janela. As portadas de madeira pintadas de branco encostam-se-me ao de leve nas maçãs do rosto. Vejo o céu azul lá fora, de um azul tão livre, tão limpo como o mar das ilhas gregas onde as sereias namoram com os pescadores nas tardes de Sol sem fim. As cortinas serpenteiam ao vento em asas de gaivota. 

Pousam os pardais nas portadas brancas e o seu chilrear entra sem pedir licença, transformando-se em crianças pequeninas e curiosas que exploram todos os lugares recônditos e secretos dentro da minha boca à procura de tesouros. Na sua inocência, não sabem que trazem aquilo que buscam —, a vida

Batem as portas das gaiolas contra as paredes e alarga-se a janela que se me abriu na boca, rasgando paredes, tecidos, pele, carne, veias, mordaças, amarras. E voam em liberdade aves-do-paraíso de-todas-as-cores-que-o-mundo-já-viu e de muitas outras que ainda não foram inventadas. 

Os cadernos que repousavam nas gavetas voam janela-fora como pássaros de asas abertas, que o vento folheia, lendo em assobios as histórias que lá escrevi. Rasgam-se as páginas e espalham-se em sementes pelos campos. As minhas palavras despontam em papoilas e malmequeres, em árvores de fruto, em flores de jasmim e ervas aromáticas e plantas medicinais. 

VOAM de dentro da garganta as gaiolas agora vazias. Voa a poeira, o cotão, os fantasmas, as almas penadas, os demónios, os medos, os pesadelos. Liquefazem-se numa chuvada que sacia a sede da terra, que nutre e movimenta todos os influxos da Natureza e dos seres humanos.

Pela janela da minha boca entram as vozes frescas das pessoas que conversam na rua, o choro dos bebés acabados de nascer, o barulho dos carros, a sineta da bicicleta. 

O Sol doce transborda por todas as divisões numa torrente de luz dourada, de sumo de laranjas quentes amadurecidas no mês de Agosto e manteiga derretida em torradas fumegantes feitas pelas mãos das avós. 

Expiro o cheiro do mofo e das roupas velhas guardadas em baús esquecidos. Estilhaça-se o silêncio, seca a humidade nas paredes, que se pintam agora de cores novas e limpas. Acendem-se luzes. Ouve-se música. 

E a janela torna-se maior que a minha boca. 

Estende-se por todo rosto. Toda a cabeça. Chega-me aos braços, às mãos, às pontas dos dedos. Desce-me pelo peito, pelas pernas, os pés. Elevo os braços, toda eu sou janela. Atravesso-a. Atravesso-me a mim mesma. 

Sou maior que a janela. Não, sou mais pequena que a janela. Também não, sou só a luz que entra na janela. Só a luz. Só a luz. Só a luz.

O arcano O Mundo dá-nos as boas-vindas a um inimaginável mundo novo, um novo paradigma, contudo parido por nós, dado-à-luz, depois de todas as aprendizagens concluídas, e introduz-nos agora num novo capítulo, mais pleno e sábio, com novos mistérios, novas etapas. 

Tudo o que vemos no exterior, começa sempre no nosso interior. Nos olhos, na percepção. Vejamos, pois, o dealbar dos tempos que se seguem com os olhos mais limpos e sábios que nos for possível. Este é o novo mundo.

De janelas abertas,

Hazel

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Foto: Hazel, por Manuel Cardoso


O Exercício da Indiferença



Tento esconder o ramo que se assoma de dentro da manga do casaco, empurrando-o de forma desajeitada antes que alguém veja. Espero que ninguém tenha reparado. 

Um restolhar igual ao que se escuta quando caminhamos pelos bosques no Outono persegue-me enquanto fujo do café, trapalhona e à pressa, deixando um rasto denunciador de folhas secas caídas pelo chão. 

Não contem a ninguém, por tudo o que há de mais sagrado, mas o que se passa é que me nasceu uma árvore. Não num vaso, nem numa floreira — , mas em mim

Começou por um raminho tímido e tenro que me brotou mesmo no centro do coração, espreitando à volta como quem não entende que estranhas voltas deram os ventos para levarem a semente que lhe deu origem a tão profundo solo. 

Os meus olhos escancararam-se de espanto. E agora, que fazer? 
Abri a gaveta da cozinha e peguei numa tesoura decidida a cortá-lo e guardar só para mim este segredo absurdo até ao último dos meus dias. 

Quando a lâmina encostou no ramo, perdi a coragem. Um ramo tão pequenino, quase sem raiz, que mal poderia trazer ao mundo. Que culpa teve por nascer logo no meu coração. Acarinhei a pequenina árvore como um bebé. Tomei-a como minha. 

A sede tornou-se mais intensa no correr dos dias. Uma sede específica que não poderia ser saciada com água-da-torneira. Tinha que vir das nascentes. Ou da chuva. Água viva, fresca, que se move continuamente nos influxos da Natureza. 

As raízes começaram a mergulhar-me pernas abaixo até aos pés. A árvore foi crescendo, com os ramos a serpentearem-me em torno das costas, a espreitar atrevidos de dentro do decote e a revelarem-se de baixo das saias como uma embaraçosa cauda com folhas. 

Tenho pássaros e ninhos nos ramos que me enchem os cabelos. Dois frutos suspendem-se em brincos nas orelhas. Pelos meus olhos espreita a alma da árvore. Viro-me para o Sol, danço ao vento e no silêncio da meia-noite consigo ouvir a seiva correr-me nas veias como um rio, e pulsar como o bater do coração.

Esta árvore que um dia quis cortar por não saber o que fazer com ela, tornou-se maior que eu. São muitos os dias que passo abrigada sob os seus ramos a escutar as lições que me vai ensinando na mansidão do seu silêncio verde. 

Com ela aprendi o Exercício da Indiferença

Nada externo pode perturbar uma árvore. Não existe sequer a diferença entre o bom e o mau, pois ambos são indiferentes, logo, iguais.

Quando vieram as tempestades, levaram-me as folhas, mas sobraram os ramos.
Quando quebraram os ramos, restou o tronco.
Quando o tronco ardeu, ficaram as raízes.
Quando as raízes secaram por falta de água, permaneceram as sementes dos frutos — e delas nasceu novamente a árvore, que anda comigo escondida por baixo da roupa, sob a pele, para todo o lado onde vou.

Uma árvore é-o de dentro para fora. Logo, através da ligação com o interior, o cerne, o exterior é todo ele um reflexo de paz. 

Note-se que Indiferença não é ausência de compaixão. Pelo contrário. Significa que, haja o que houver, continua a existir sombra fresca, oxigénio, pássaros e ninhos, folhas, flores e frutos, e as sementes que caem no solo e permitem o constante ciclo morte - renascimento - vida - dádiva - morte - renascimento. 

A Indiferença é a janela da Paz que permite que a dádiva da vida seja contínua. É o equilíbrio entre o movimento e as forças, uma dimensão sem começo nem fim, que transcende as leis do espaço-tempo. O caminho para alcançá-la é a renúncia ao atrito, e a percepção da unidade com a realidade interna. 

Plácido como a árvore, o arcano A Temperança leva-nos à arte da auto-observação amadurecida no silêncio e à compreensão dos mistérios interiores para sublimar intempéries passadas, com a limpeza de uma boa chuvada: sem dor nem trauma. 

Sob os ramos,

Hazel
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Foto: Fernando Gonçalves / Modelo: Hazel Evangelista 

Siga aquele Táxi


"Vai ficar com medo de sofrer para o resto da vida? Então, mas não é o medo de sofrer também uma forma de sofrimento?"

Nisto, o condutor do táxi Mercedes interrompeu-se e guinou para a direita desviando-se do carro cinzento-tédio que apareceu inesperadamente pela esquerda sem respeitar prioridades.

A expressão pacífica e enigmática de sábio-das-montanhas diluiu-se à medida que o seu rosto se agudizou em tensão perante o quase-embate.

São dezasseis euros. As notas e moedas deslizam em silêncio para a mão áspera do taxista conhecido por adivinhar o futuro dos passageiros.

A porta abriu-se com um rangido e todo o céu parece também apartar-se enquanto as nuvens se afastam.

As botas castanhas caminham para fora do veículo, reflectidas nos pequenos lagos espelhados de água da chuva e colocam-se em bicos-de-pés, acercadas pelos ténis verde-musgo, num abraço daqueles em que os corações encostam directamente um no outro.

— Correu bem a viagem? Deixa, que eu levo a tua mala.

Se foram felizes para sempre não sabemos. Mas tiveram a coragem de tentar.

O arcano Sete de Paus confronta-nos com as sombras dos medos que-não-têm-razão-de-ser, para nos ensinar que sofrer de medo é uma forma de antecipar um sofrimento que pode nunca acontecer. É viver uma realidade paralela, pessimista e ilusória.

Corra o risco. O que há a perder, senão o sofrimento que já tem por medo de sofrer?

Hazel
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Obsessão


Roubei uma colher de sopa. Está escondida debaixo do meu colchão. Quando vêm mudar os lençóis, coloco-a atrás da sanita. Esta colher, que tenho há duas semanas, é o meu passaporte para a liberdade.

Na parede junto à cama há um ponto de maior fragilidade onde todos os dias escavo com a colher, lenta e pacientemente, para que o meu cárcere — que sou eu — não descubra o plano de fuga. Para não levantar suspeitas, vou comendo a terra e o estuque (não sabe pior que salada de beterraba crua, garanto-vos). Mas fui apanhado.

Sacudi a terra da cara com duas lambadas que dei a mim mesmo, peguei-me por um braço e lancei-me para a solitária. De castigo por ter tentado fugir de mim, para reflectir sobre o crime que me levou à clausura. Um crime que neguei, como todos os culpados que procuram desesperadamente uma absolvição que não merecem, e escapar à condenação.

A obsessão é uma prisão onde o cárcere e o carcereiro são a mesma pessoa. Encontro-me aprisionado em mim mesmo. Condenado por crime nenhum, cumpro pena por tempo indeterminado.

No julgamento, o juiz era eu. O advogado de acusação era eu. O advogado de defesa era eu. Os jurados eram eu. O guarda que segurava as algemas à porta do tribunal era eu. E o réu, cabisbaixo, mortificado pelas penas que caíam de si para si — era eu.

Tudo me assombra o pensamento em imagens fractais, como uma sala de espelhos e vidros recortados, na solidão da solitária, onde um raio de luz tímido é o último fio de lucidez que me resta.

A minha sombra espalha-se parede acima até se diluir na penumbra. Estendo-lhe a mão. Olhamo-nos nos olhos. Perdoamo-nos.

Abatido de cansaço, encolho-me deitado no chão de pedra fria à espera da manhã, com a sombra sentada a lado velando-me o sono.

O despertador pousado na mesa-de-cabeceira acorda-me ao raiar dos primeiros alvores. Os vizinhos conversam debaixo da minha varanda.

— Sonhaste esta noite?
— Sonhei, mas não me lembro sobre o quê — respondo à minha mulher.

Saio de guarda-chuva aberto, a caminho do trabalho. Atrás de mim, sem que eu note, caminham as sombras desdobradas pela estrada fora: o carcereiro, o juiz, os jurados, os advogados, o guarda.

O arcano O Diabo projecta-nos as sombras mais secretas na parede, numa dança diabólica de tempos e contratempos estonteantes que, ora nos iludem o ego, ora o deitam por terra. 

Por mais que tentemos agarrar-nos à verdade absoluta como se da nossa colher de sopa se tratasse, é precisamente a capacidade de questionar, de duvidar, de aceitar luz e sombra sem negar nenhuma que nos trará a libertação da clausura do ego.

Hazel
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Hospital de Corações


ACABEI DE INVENTAR  ESTE NOME. Quem está doente do corpo vai para o hospital “comum”, quem está doente da cabeça vai para o hospital psiquiátrico e quem está doente do coração vai para o Hospital de Corações.

É um edifício semelhante aos outros por fora, mas com pessoas mais simpáticas e cuidadosas. Todo o staff usa sapatinhos de lã, roupa colorida e também faz parte do equipamento um medidor de dores de coração em vez do vulgar estetoscópio. Neste serviço curam-se mágoas, angústias, tristezas e desgostos de amor.

Os corredores são forrados de algodão até ao tecto e o chão tem relva macia e perfumada. Nas enfermarias, os pássaros trazem gotas de madressilva no bico que vão depositando mililitro a mililitro nas feridas expostas. Aqui o Betadine não tem serventia.

Os pacientes magoados são aconchegados em lençóis de asa de pássaro e fecham os olhos durante muito tempo até se sentirem capazes de voltar a abri-los sem perigo de desidratação devido aos ribeiros que deles transbordam em águas contaminadas. É preciso limpar, secar, repousar e, acima de tudo, abrandar o ritmo dos batimentos cardíacos que cavalgam desenfreadamente pelos campos pedregosos da dor.

Na hora das refeições, serve-se tempo em modestos tabuleiros. Puré de tempo com escalopes de tempo, salada de tempo e, para beber, tempo espremido. Os pacientes não gostam do cardápio, mas é o único que realmente pode ajudar. A dieta do tempo, além de desinteressante e insípida, ainda tem a terrível desvantagem de ter de ser seguida durante muito tempo.

Não existe roupa para os pacientes no Hospital dos Corações. Andam nus, despojados de tudo o que possa causar ainda mais peso para além daquele que já transportam. Apenas as asas de pássaro servem de agasalho nas noites mais frias e solitárias, onde se ouve o eco do choro e o gemido da dor abafado nas almofadas. Mas há-de passar, tudo passa um dia, com a ajuda do Doutor Passarinho. Ei-lo a entrar agora no gabinete de medidor de dor de coração pendurado no bico para auscultar mais uma paciente que acabou de dar entrada.

Chama-se Hazel e vai ficar na cama cinco, junto à janela. Um bando de pássaros-enfermeiros faz-se acompanhar dos auxiliares em sapatinhos de lã para ajudar a recolher as águas que lhe escorrem dos olhos. A cura vai demorar. Submetida à dieta do tempo, a paciente debate-se e implora por uma anestesia geral ou a eutanásia, mas ambas lhe são recusadas. Terá de aguentar. Terá de conseguir.

O arcano Três de Espadas diz-nos que por muito que doa, um dia tudo acabará por passar. Quando? Não sei. Mas não pode haver tempestade que dure para sempre.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1688
foto: Comfreak, licença CC0

Para uns Anjo, para outros pior que Belzebú


Fugiram-me duas velas de casa. Tinha-as em cima da mesa de jantar, cada qual no seu castiçal, e desapareceram sem deixar pingo de cera nem de remorso. Corri atrás delas rua fora, mas no primeiro cruzamento virou uma para cada lado. As danadas. Voltei para casa de mãos a abanar.

Coloquei um anúncio no Encontra-me. Entre cães e gatos desaparecidos, lá estavam as minhas velas. Ambas brancas e simples, uma acesa e outra apagada. Ofereci alvíssaras a quem mas trouxesse de boa saúde e ainda por derreter.

Estas são velas especiais, têm de compreender. Velas que falam, que pensam, que têm opiniões e caprichos. Andaram desaparecidas durante vários dias e noites até finalmente dar com elas estafadas, caídas à porta de casa. A vizinha da frente levantou uma sobrancelha julgando que se tratasse de alguma reles feitiçaria, mas expliquei-lhe que “não, vizinha, isto são só as velhacas das minhas velas que me tinham fugido.”

Entraram de pavio tombado para a frente, receosas do ralhete que iriam levar. Encaixaram-se muito direitas e compenetradas nos castiçais enquanto viam puxar de uma cadeira para ouvir o que tinham a contar sobre a inusitada evasão.

Começou a acesa a falar. Vinha maravilhada. Por todas as ruas onde tinha passado, encontrou luz: reflectida nas montras das lojas, a cintilar nas paragens de autocarro, nos carros que circulavam na estrada; a dançar nos olhos das pessoas que cruzaram o seu caminho. Jamais imaginaria que houvesse tanta beleza no mundo, suspirava encantada.

Seguiu-se a apagada. Num suspiro profundo e tristíssimo, lamentou a malograda saída. Sentiu-se perdida, desajustada nas ruas afundadas em trevas. As pessoas eram obscuras e sinistras, tudo era desinteressante, escuro e vil. Nunca encontrou uma réstia de luz.

Homessa, que tontas, disse-lhes, enquanto fui buscar um espelho para colocar à frente dos castiçais, aquilo que viram foi uma projecção da vossa própria luz. Ou da ausência dela.

A acesa sorriu enternecida. Amolecida pelo calor inclinou-se para o lado e acendeu a companheira apagada que num segundo começou a irradiar luz, alívio e alegria. Prometeram não tornar a fugir.

Nós somos para os outros um reflexo daquilo que eles são. Para os detentores de luz, teremos sempre alguma luz e virtude. Para os mais sombrios, seremos vício e escuridão.

Aqueles que nos olham com bondade encontrá-la-ão também em nós; seremos anjos para esses — e piores que o belzebú para os outros. Deixá-los ver-nos com os olhos que têm, que importa lá isso. O arcano Rei de Paus inspira-nos a não parar de brilhar — e iluminar aqueles que se cruzam connosco.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1687
Imagem: licença CC0

A louca da camisa de dormir


A louca da camisa-de-dormir todos os dias faz o mesmo percurso que se cruza com o meu, ora de manhã, ora pela tardinha. Contemplo a visão onírica da senhora de meia-idade que atravessa a estrada sem pressa, a chinelar nas suas chanatas de quarto com borlas emplumadas em seda rosa-pétala, cabelos de nuvem e às vezes um robe puído sobre a camisa-de-dormir comprida.

Há no seu semblante triste a beleza silenciosamente desesperada e suspensa no tempo de uma mulher que naufragou e não pára de nadar mesmo sem mar entre as vagas dos dias que se sucedem — sem nunca chegar a terra.

Não usa chapéu para se proteger da chuva — parece mesmo não a sentir. Caminha de olhos fixos no vazio e mãos caídas. Vejo nela o avesso de nós, que saímos de casa vestidos, aprumados, ordenados e perfumados.

Ou talvez sejamos nós o avesso dela. 

Quando regressamos a casa, libertamo-nos dos atavios sociais e vestimos a roupa-de-andar-por-casa, que costuma ser confortavelmente triste e gasta, às vezes tem nódoas que não saem, está debotada e pingona, mas somos incapazes de a deitar fora.

A roupa-de-andar-por-casa é o sorriso que esmorece pelo cansaço ou pelo enfado da rotina. A maquilhagem que cai desmaiada nas olheiras, os cabelos desalinhados, as unhas dos pés compridas, os chinelos velhos e um pouco — ou muito — fedorentos, que cheiram a casa, a conforto e a amparo.

A voz áspera do catarro, a rabugice do Domingo à noite, o ranho a espreitar das narinas dos gaiatos, as caretas que fazemos para o espelho quando vamos a caminho do duche pela manhã. A suposta ausência de beleza a que nos permitimos entregar — e onde repousamos — quando nos sentimos seguros e protegidos do olhar alheio.

É a verdade do que somos, com os nossos maus cheiros, pêlos que despontam bravios onde menos queremos, cabelos oleosos junto à raiz e aquele bocadinho de sujo debaixo das unhas — a crua humanidade que não nos atrevemos a partilhar senão com aqueles que sabemos que vão amar-nos por completo.

O arcano Sete de Espadas aponta-nos para as nossas roupas de andar-por-casa e de andar-na-rua, para as mentiras que contamos ao mundo e a nós mesmos. Todos mentimos. Até o mais honesto de nós. Porque se mostrássemos toda a verdade como ela é, seríamos para os outros uma louca em camisa-de-dormir.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1686

Quatro Casamentos e Três Funerais


A respeito do cartaz “Não matem os velhinhos”, lembrei-me de uma gaiata que conheci, bem mai’nova e desempoeirada que a sirigaita da frase. Sorridente e surpreendente no seu batom vermelho-malagueta e óculos-escuros-femme-fatale, assentia com a cabeça enquanto escutava a sua história ser-me contada pela amiga que fez as apresentações.

Que a jovem contava oitenta e duas primaveras. Sorri com admiração, duas vezes a minha idade.

Que o marido tinha morrido havia meia-dúzia de anos num acidente de viação; que era ela quem estava ao volante. O meu sorriso logo esmoreceu, dando lugar ao silêncio respeitoso, compadecido e atrapalhado de quem ficou subitamente sem saber como reagir.

Mas que continuava a conduzir. E que entretanto tinha casado novamente havia poucos meses, lançava a entusiástica amiga enquanto a moça de oitenta e dois anos ia acenando com a cabeça numa expressão travessa. O meu sorriso voltou aos poucos a estender-se aliviado, ora bem, a vida continua, está certo, tem que ser assim.

Que era a quarta vez que casava. As minhas sobrancelhas subiram em espanto.
E todos pela igreja. Homessa, como?, indaguei. Eles morrem todos!, exclamou sem grama-de-drama. Não aguentei. Levei as mãos à cabeça e ri-me incrédula. Os lábios vermelho-malagueta riram também, da tragicomédia que por vezes é a vida; e que se apresentava ali, simples, despreocupada e limpa na doce e divertida senhora que vivera o dobro de mim.

Compreendi no seu riso que não havia tempo a perder, culpas carregar, tristezas a alimentar, dramas para chorar. Havia tão somente um ponteiro de tempo a marcar tiquetaque e um apetite voraz pela vida como o de uma criança que apenas quer os doces sem passar pela sopa e pela salada. Tudo é relativizado. As tragédias, o que os outros pensam, as preocupações, os medos. Só há tempo para o agora e para a verdade que, no fundo, são quase sinónimos um do outro.

Ajudei-a a subir as escadas depois da consulta. Os olhos brilhavam-lhe. Ia com pressa, afinal estava casada há pouco tempo e o corajoso marido desafiador das funestas estatísticas esperava-a em casa. Despedi-me grata pelo privilégio da aprendizagem que trouxe aquele sorriso vermelho-malagueta, com uma admiração e afecto que duram até hoje.

O arcano Ás de Paus aponta-nos a luz da vida e diz-nos que podemos fazer com ela tudo aquilo que quisermos, a qualquer momento. E que bom que é. Tenhamos a idade que tivermos. Aconteça o que acontecer. Só depende de nós. Mesmo que os outros não entendam as escolhas imprevisíveis ou fora do que é considerado “normal”.

Que a centelha divina possa brilhar enquanto houver caminho para andar. Os velhinhos já não são como antigamente; estão mais vivos, mais rebeldes e mais jovens que muitos jovens que andam por aí a passear cartazes.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1685
foto: Mansellgrl5, licença cc0

Numa Casa Portuguesa Fica Bem...


Ser português é sinónimo de ter um conjunto de pratos impecável no armário (que apenas é usado quando vêm visitas) e outro, já velho-gasto-e-possivelmente-lascado, que é o do dia-a-dia. Quem diz pratos, diz copos, toalhas de mesa ou as almofadas do sofá, que se viram ao contrário para “o lado das visitas” escondendo as nódoas na parte de baixo. Porque se os outros não virem as nossas mazelas, elas “não existem”. Não digam que não.

Temos aversão (para não dizer pavor) a parecer mal aos olhos dos outros e poupamos a-mais-fina-loiça para que as visitas, recebidas com uma cerimónia nunca assumida, vejam apenas o melhor — e não o real. Para “os de casa” usamos os pratos velhos, como se não merecêssemos o melhor que há no nosso próprio armário de cozinha. Homessa. Porque seremos nós assim?

Após profunda introspecção, a vossa velha escriba concluiu que a casa onde vivemos é um ser vivo e comunica como se fosse uma contraparte dos seus habitantes. Por exemplo, o conteúdo do armário onde guardamos os pratos pode ser, em muitos aspectos, semelhante ao interior do nosso coração:

1. Se existir uma infinidade de loiças, novas e antigas, demasiadas para o espaço existente, pode revelar um coração cheio de apegos, preso ao passado;

2. Ter um conjunto de pratos para o dia-a-dia e outro para as visitas, dir-se-ia que sugere incapacidade ou dificuldade em entregar-se de corpo e alma, sem reservas, na amizade, mantendo sempre um pé atrás;

3. Um conjunto de loiça para as visitas, outro para o dia-a-dia e ainda outro terceiro que ocupa um lugar "intermédio", falta de amor por si mesmo, crença de que não é digno do melhor.

Ai, Senhores. Pára tudo. Vou ali à cozinha ver o meu armário.

(Voltei!)

Esta é a história dos meus pratos: já tive dois conjuntos, um do dia-a-dia e outro das visitas (admito com algum embaraço). Entretanto, as transformações que a vida me trouxe levaram a que acabasse por ter no meu armário apenas alguns pratos soltos, restos de outros conjuntos, com um ou outro lascado. Destroços do passado e um coração partido.

Quando tomei consciência desta correlação, um dia desfiz-me dos pratos soltos e lascados e comprei um conjunto de pratos brancos. Simples, humilde e novinho em folha. Era tempo de deixar para trás o que estava atrás e de abraçar o presente.

Porém, o coração continuou partido. Na verdade, ainda está. Mesmo com pratos novos. Mesmo com refeições felizes. Creio que, como um prato fica lascado para sempre, um coração partido nunca mais volta a ficar inteiro. E ninguém garante que não se volte a quebrar ainda mais, em pedaços menores.

Contudo, não foi debalde a libertação dos pratos soltos e maltratados, pois representou o desejo e a possibilidade de recomeçar. E o facto de não ter comprado um conjunto extra de pratos, significa que não tenho um plano B. O que está à vista é o que há.

O arcano A Lua inspira-nos a adaptar-nos às diferentes fases que a vida traz, sem cair na armadilha de alimentar ilusões. Tudo é mutável, sensível, inconstante e tão frágil como um prato de loiça que cai no chão.

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online
Tarot | Reiki | Regressão | Reprogramação Emocional | Terapia Multidimensional
Marcação: casa.claridade@gmail.com

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1684

O Vazio


A campainha está a tocar, vou ali abrir a porta: são os senhores que vêm instalar um contador bi-horário. Façam favor de entrar, é por aqui. Diz que é raro terem pedidos destes, que os últimos contadores do género foram instalados há muitos anos num mosteiro perdido no nevoeiro lá para as bandas do Nepal.

Hoje em dia toda a gente anda sempre ocupada com alguma coisa e as horas de vazio não despertam o interesse de ninguém, esclarece o sujeito mais alto enquanto ajuda o colega a tirar o contador bi-horário da caixa.

Isso não é de hoje, afianço-lhes. Senão, vejamos: antigamente, quando as pessoas iam à casa-de-banho, liam de-fio-a-pavio os rótulos dos frascos de shampô, do gel de banho, do ambientador; havia os que se entretinham com livros de banda-desenhada, com a literatura médica de alguma caixa de comprimidos que se encontrasse por perto — no fundo, tudo o que estivesse no perímetro de um braço estendido em torno do trono.

Hoje levam o telemóvel, a partir de onde enviam emails, sms, partilham fotografias, não perdem pitada das polémicas do dia nas redes sociais —, como quem depende de um fio invisível que o agarre ao mundo cá fora.

Sempre houve a necessidade de ter alguma âncora onde se possa prender a atenção — e que salve a Humanidade, apavorada com a perspectiva do vazio, de se deparar com ele. Assim, olhamos para fora — e nunca para dentro.

Ora bem, já está instalado o contador bi-horário. Só uma assinatura aqui em baixo, menina Hazel, se faz favor. Obrigado e um bom dia.

Fecho a porta satisfeita com o contador bi-horário novinho em folha instalado mesmo em cima da minha cabeça. Tudo para poupar, que o valor da energia anda pela hora da morte.

Planeio usufruir de uma hora de tarifa de vazio uma vez por semana. Sessenta minutos de telemóvel e computador desligados (não referi televisão porque não tenho) e, sem gente a atazanar-me o juízo, pretendo sentar-me e ficar dignamente a olhar no vazio.

Uma hora que, conto, será muito produtiva, pois, em vez de despender energia em tudo e todos, estarei a recarregá-la (sem perigo de electrocussão caso me distraia e entre em sobredosagem se deixar passar mais um quarto-de-hora ou pedaço de tempo que me valha).

Perscrutar o vazio em absoluta ausência de emoções pode parecer o equivalente a contemplar o abismo vertiginoso ou um poço sem fundo, mas há pouco espreitei para lá e pareceu-me seguro e arejado.

Confrontá-lo não me fez sentir vazia, mas preenchida, centrada. Capaz de reclamar todos os pedaços de mim que perdi por aí em angústias e preocupações, em mágoas e excessos de paixão, em dar mais do que recebi, em esperar e desesperar, em imaginar e desimaginar.

Reclamo-os e reintegro-os no meu vazio, no silêncio e na solidão, na paz absoluta.
Só então voltarei à tarifa de fora de vazio.

O arcano O Eremita envia notícias para o mundo através de um pombo-correio que pousou na minha janela. Trazia na pata uma mensagem que desenrolei com cuidado. Estava vazia.

Hazel
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Marcação: casaclaridade@gmail.com

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1683

Sabes que estás a ficar velho quando


Esta dor que hoje me tem apoquentado a zona fronteiriça entre o fundo das costas e o começo das nádegas concebe previsões meteorológicas com maior exactidão que o ido Anthímio de Azevedo. Amanhã vai estar fresco, algumas nuvens e o Sol vai andar acabrunhado, diz-me.

Tenho conversado com ela; todas as dores vêm para ensinar e quanto mais depressa aprender a lição, mais asinha a mestra parte em busca de novo pupilo. É uma dor velha, muito idosa, que veio visitar-me por um dia — amanhã diz que já se vai embora.

Ofereceu-se para me ensinar a fazer crochet, renda-de-bilros e bordado em ponto-cruz. Declinei cordialmente o obséquio, não fosse ela tornar-se hóspede permanente.

Vencida e de malas aviadas para partir pela calada da noite, enquanto durmo o sono dos justos de pijama-às-riscas e cabelo entrançado, a velha dor deixou-me de presente a sabedoria dos ditados populares, essas verdades-indiscutíveis-e-cientificamente-provadas que tenho dado por mim a dizer aos mais novos.

Foi neste momento que me descobri velha como uma relíquia empoeirada de museu, hortaliça murcha, par de botas fedorentas que já palmilharam meio mundo e sabem todos os atalhos, caminhos e azinhagas.

Como sou uma boa velhaca, descobri que este mal é contagioso: começa-se a memorizar provérbios e depois passamo-los aos outros sem apelo nem agravo. Como a maleita proverbial tem andado em recessão (quem é que os cita hoje em dia?), resolvi disseminá-la em grande escala. Ora tomem disto:

— Depois do Natal, dá o dia um saltinho de pardal.

— Calças brancas em Janeiro, sinal de pouco dinheiro.

— No mês de Janeiro sobe ao outeiro para ver o nevoeiro.

— Janeiro fora, cresce o dia uma hora.

— Fevereiro engana a velha ao soalheiro.

— Em Fevereiro, salto de carneiro.

— Fevereiro quente traz o diabo no ventre.

— Março, marçagão, de manhã é Inverno e à tarde Verão.

— Em Março sobe ao outeiro, se vires verdejar, põe-te a chorar, se vires nevar, põe-te a cantar.

— Páscoa em Março, ou fome ou mortaço.

— Março, marçagão, de manhã cara de gato, à tarde cara de cão.

— Abril, águas mil, coadas por um mandil.

— Em Março tanto durmo como faço.

— Abril frio e molhado, enche a tulha e farta o gado.

— Uma água de Maio e três de Abril, valem por mil.

— Em Maio, cereja ao borralho.

— Água de Maio, pão para todo o ano.

— Em Maio, canta o gaio.

— Maio claro e ventoso, faz o ano rendoso.

— O que Janeiro deixa nado, Maio deixa espigado.

— Agosto, mês de desgosto.

— Não há Sábado sem sol, Domingo sem missa nem Segunda sem preguiça.

— A velha que bem governou, o melhor tição para Maio o deixou.

— Em Agosto todo o fruto tem o seu gosto.

— Uma andorinha não faz o Verão.

— Em Agosto frio no rosto.

— Em Dezembro descansar para em Janeiro trabalhar.

O arcano A Sacerdotisa inspira-nos a virar as páginas do tempo, a fazer uso da sabedoria que adquirimos e a nutri-la discreta e incessantemente, numa gestação silenciosa. Sabemos sempre a resposta que precisamos, mesmo quando achamos que não. Basta escutar o que as nossas dores têm para ensinar.

Hazel
Consultas em Cascais, Oeiras e online
Tarot | Reiki | Regressão | Reprogramação Emocional | Terapia Multidimensional

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1682
Foto: geralt, licença CC0