Jardinar como um verdadeiro jardineiro


Observar um jardineiro a trabalhar é um verdadeiro tranquilizante natural, uma panaceia para os sobressaltos que nos chocalham a paz de espírito. Nos jardins municipais, eles são quase invisíveis, vestidos de farda verde como se fossem uma discreta e respeitosa extensão da natureza circundante - e são-no, deveras. 

Espelhada no seu rosto, a doce e serena ausência de quem viaja ao sabor do vento em pensamentos enquanto as mãos se fazem dotar de vida própria cortando folhas secas e atando os ramos verdes-claro, ainda tenros, às estacas que lhes guiam e orientam o crescimento - como um paciente mas firme professor que ensina o caminho ao aluno. 

É apaziguador contemplar a forma como os jardineiros aconchegam a terra húmida à volta das raízes da alfazema replantada no fim da Primavera, como quem prepara a cama de um bebé e lhe compõe os cobertores para que não apanhe frio nas costas. Raramente os vejo correr no cumprimento das suas funções. Um dente-de-leão não tem pressa de ser arrancado. Pode ser agora ou daqui a duas horas; não vai fazer diferença. E está certo assim. O imediato é inútil e irrelevante no crescimento de um jardim. Que o diga a hera, constante, lânguida e sinuosa.

Eles, os cuidadores do verde, sabem que tudo leva o seu tempo e, mesmo assim, esse tempo pode até nunca chegar. Afinal, uma planta pode acabar por nem medrar. De nada adianta tentar pressioná-la para que brote mais depressa e para que dê frutos. Semeia-se com a fé na mão esquerda e o desapego na direita. Sabe-se colocar a semente na profundidade certa e na exposição solar mais favorável. Rega-se, aduba-se, cuida-se. Faz-se o melhor que é possível fazer e depois o resto é com a Natureza. É ela, senhora soberana do compreensível e do inatingível, que dá o veredicto final.

Saber esperar é uma virtude rara e imensamente admirável que os jardineiros, possuidores de sabedoria forte e telúrica como raízes de cedro, dominam com mestria. Tudo se deve fazer no momento certo para ser feito. E depois espera-se enquanto se cuida, e cuida-se enquanto se espera, sem que se dê pela espera a decorrer.

Esta semana, a carta Valete de Ouros inspira-nos a colocar as mãos na terra e a sermos jardineiros da nossa própria vida. Sem ceder a pressões. Sem dar um passo maior do que a perna. Sem necessitar que alguém nos motive. Trabalhando em harmonia com o todo, para um propósito concreto, mesmo que não saibamos se esse objectivo alguma vez será atingido.

Como um jardineiro, temos de semear, cuidar, nutrir, aprender a arte da paciência, e esperar pelo melhor. Se tudo correr bem, colheremos os frutos um dia, quando o tempo certo chegar. Senão, livramo-nos dos ramos secos, e voltamos a plantar - quando regressar a Primavera.

Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1602
foto: Foundry, licença CC0

O que querem as mulheres?


Ao longo de séculos, as mulheres lutaram ferozmente para ter o direito de usar calças, fumar, tomar a pílula anticoncepcional, trabalhar fora de casa, ser promovidas nas empresas, votar, entrar no mundo da política, ter poder de decisão.

Queimaram soutiens, andaram à tareia, insultaram e foram insultadas.
E conseguiram - nos países considerados civilizados, bem-entendido.

As mulheres quiseram poder fazer tudo o que os homens fazem e, de preferência, de forma mais criativa e arrojada. Quiseram mostrar-se mais capacitadas, melhores que os homens em todos os aspectos, num compreensível exercício eufórico de liberdade com retroactivos, para compensar séculos de opressão patriarcal.

Ainda que haja aprimoramentos a fazer, a igualdade foi conquistada.
O rótulo do sexo fraco foi arrancado com revolta e despedaçado.

Excepto quando uma porta se abre. Nesse caso, os homens continuam a ceder passagem às mulheres para que estas entrem primeiro. Somos iguais, mas vocês, os portadores penianos, entram a seguir. Tomem.

Ou, se houver poucos lugares sentados, são os homens que continuam a ter de prescindir do conforto em prol das mulheres, mesmo que estas não sejam idosas, grávidas ou tragam uma criança de colo. Também em caso de catástrofe, são as mulheres as primeiras a ser resgatadas.


Os homens já não sabem o que fazer connosco. Estão confusos.
Afinal, o que queremos nós?


Não posso responder pelas outras. Falando apenas em meu nome, quero poder usar calças, votar, ter poder de decisão, trabalhar fora de casa, ser promovida.

Continuo a usar soutien em declarado e empinado protesto contra a lei da gravidade.
Quero também ser salva primeiro em caso de catástrofe. E entrar à frente nos edifícios, especialmente se for para ir às Finanças, que está sempre uma grande fila para tirar senha.

Se ninguém se importar nem levar a mal, eu quero tudo.

Desculpem, homens!

Hazel

Procura-se aranha viajante


CENTRO DE EMPREGO DAS ARANHAS
Anúncio afixado na Delegação da Sala - Canto da Parede Junto à Janela

Procuro:
Aranha aventureira e leal, com total disponibilidade para viajar curtas distâncias.

Ofereço:
Estadia no espelho lateral esquerdo do meu carro, música de boa qualidade (tenho sempre um duplo álbum dos The Doors no porta-luvas e, ocasionalmente, também lá canta o Bryan Ferry) e alimentação diversificada consoante o tipo de fauna que esvoaça nas localidades onde nos iremos deslocar.

Funções:
Deverá conhecer todos os meus caminhos, desvios e atalhos; saber guiar-me nas encruzilhadas e antever engarrafamentos. São valorizadas capacidades de orientação a estacionar em lugares apertados. Terá de suportar com heróica bravura ouvir-me cantar quando viajarmos sozinhas (os ouvidos humanos não possuem, lamentavelmente, imunidade para a minha voz).

Desafios da profissão:
Não poderá enjoar nas viagens de automóvel, nem ter propensão a ficar com a garganta inflamada devido às correntes de ar (é permitido usar cachecol, mas não muito comprido - vd. o caso da bailarina irlandesa Isadora Duncan).

Terá de ser resistente e musculada, com uma capacidade de sobrevivência superior à da sua antecessora, a minha saudosa companheira que era um autêntico sidecar aracnídeo, mas, infelizmente, não sobreviveu na última ida à lavagem automática (o risco é moderado, pois apenas lavo o carro uma, ou, no máximo, duas vezes por ano - e este ano já foi lavado).

Lidará diplomaticamente com comentários desmotivadores ocasionais, de pessoas que não compreendem os perigos, a emoção e o valor da profissão de aranha-viajante, que poderão por vezes viajar comigo e exclamar algo como: "Que nojo, já viste a teia-de-aranha que tens aí no espelho? Tens de limpar isso, dá mau aspecto."

Compreenderá sem ressentimentos que seremos amigas íntimas, porém, sem qualquer contacto físico. Viveremos uma relação platónica, embora de grande fidelidade.

Regalias:
Comprometo-me a não danificar as instalações aracnídeas, vulgo, teia-de-aranha.

É permitido constituir família, desde que as crias se mantenham na teia e não andem a fazer sapateado no interior do carro.

Será autorizada a dizer adeus às outras aranhas que viajam nos espelhos dos outros carros, conversar com elas quando pararmos na fila de trânsito e ter uma vida social preenchedora.

O meu carro é um carro onde se canta. Assim, a aranha que me acompanhar terá permissão para cantar os clássicos das viagens de autocarro, como "Aguarrás, aguarrás..." e outros êxitos semelhantes.

O vernáculo é permitido, aliás, dentro do meu veículo é considerado 'terminologia técnica' à qual se recorre, seja para fazer referência à condução alheia, seja para fins terapêuticos de alívio da tensão emocional.

Perfil:
A aranha que viajar comigo será mais que um mero co-piloto. Será uma companheira de aventuras, uma amiga, uma conselheira, um oráculo animal, e terá da minha parte toda a consideração e reverência dignos do mais nobre e fino corcel.

Poderão enviar por email os vossos curricula com nome, cartas de referência provenientes de outras aranhas mais experientes e indicação dos três últimos espelhos de carro onde viajaram.

Expectante das vossas respostas,
Uma viajante solitária,

Hazel
Foto: licença CC0

Tudo sob perfeito (des)controlo


Somos inocente e deliciosamente chatos e previsíveis. Faz-se planos para o futuro. Decide-se o que vai ser o jantar de logo à noite, que se põe dentro de uma travessa no lava-loiças para ir descongelando à temperatura ambiente. Planeia-se e reserva-se as férias do Verão com uma antecedência quase deprimente, porque ficam francamente mais baratas.

Escolhe-se a roupa para vestir na manhã seguinte com uma capacidade infalível de previsão meteorológica, digna do Anthímio de Azevedo. Sonha-se com o dia em que finalmente se consegue demonstrar aos sacanas que nos deitaram abaixo quando mais precisámos deles que, afinal, até conseguimos fazer alguma coisa de jeito da vida. Planeiam-se até os dias sem planos. Temos tudo controlado até ao momento em que percebemos que tudo isto está sustentado por fita-cola, cuspo e um clip.

O tapete é-nos puxado debaixo dos pés quando menos esperamos. Mas qual jantar, quais férias, qual dia seguinte, quais sacanas. Que cegueira é esta em que nos encontramos, sempre a planear o futuro, sempre a viver mais à frente, sempre a querer estar um passo adiante do espaço que ocupamos, desfazados do tempo, de nós mesmos e dos outros. Para quê a pressa, se, no fim, façamos o que fizermos, acabamos por ir todos parar ao mesmo lugar - e, no entanto, ninguém para lá quer ir.

Assassinámos a espontaneidade a sangue-frio, e tenho cá para mim que os contratempos inesperados, que nos surgem quando menos jeito dão, são o fantasma da dita que nos puxa o pé no momento em que vamos subir para a cama, para ajustar contas connosco.

Esta semana, a carta Cavaleiro de Espadas surge-nos repentinamente como um vendaval gelado num dia que se vislumbrava cálido e estival. Ninguém estava preparado para ele, todos são apanhados de surpresa, e é bem feita para aprenderem a viver o presente e para perceberem de uma vez por todas que ninguém controla nada. Há quem lhe chame lei de Murphy. Poderíamos também chamar-lhe “abre-olhos”, por nos enraizar e devolver a humildade que havíamos perdido nos atropelos do ego.

É um tormento a incerteza de não saber o dia de amanhã. Por outro lado, sabê-lo amolece-nos a capacidade de estar alerta, de debater-nos pelos nossos ideais.

Se a ignorância nos incita a estender as asas e a aguçar os sentidos para encontrar alimento para o corpo e para a alma, o conhecimento antecipado oferece-nos o conforto flácido - e frígido - de um sofá que se afunda quando nos sentamos, como se nos engolisse. Quanto mais nos enterramos nele, mais camaleonicamente iguais a ele nos tornamos -  até sermos salvos pelo fantasma da espontaneidade, mascarado com a capa dos imprevistos que nos trocam as voltas, que nos toca à campainha de casa para despertar-nos deste sonho em que nos imaginamos seguros e arrumados - como um par de sapatos velhos.

Hazel
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1601
Foto: Sandro Giordano

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