Procuram-se Rebeldes em 2021


APESAR DOS AUGÚRIOS dos profetas-do-fim-dos-tempos que nos despertam aquele irresistível medo fascinado (ou fascínio amedrontado) capaz de fazer eriçar os pelinhos nos braços e no pescoço, terei de vos desiludir: 

Ainda não será em 2021 o fim da Humanidade. 

Se falhasse esta previsão também não estaria cá para ouvir reclamações, podeis afirmar, e com razão. Mas a verdade é que ainda vamos ter que nos aturar uns aos outros por muito tempo. E que bom é. 

Quem está vivo, a lidar com os problemas que tem, e a antecipar os que não tem através da fina arte masoquista da preocupação, está cheio de sorte.

O virar de página nos nossos calendários trar-nos-á, contudo, um ano de contra-sensos:

Estaremos gratos por estar vivos, mas em vez de sentirmos alívio pela superação da pandemia e das crises pessoais e colectivas, estar vivo parece ser causa da fonte de preocupações que nos provoca medo de viver.

PREVALECERÁ O MEDO (do COVID e de outras variações que surgirão entretanto), o medo de tomar decisões, o medo de gastar dinheiro que poderá mais tarde fazer falta, o medo de viajar, o medo do desconhecido, o medo do medo. 

O estado de sobressalto que transportamos de 2020 programou-nos a estar à espera do pior. Como se, se o pior viesse, fosse até um alívio para todos. E nenhum de nós vislumbra que o pior que nos pode acontecer é passar pela vida e não viver.

Teremos várias dimensões de realidade a operar em simultâneo; uma, aquilo que julgamos ser a verdade, porém, é-nos “instalado” através dos meios de comunicação social. Outra, aquilo que será o impacto directo e indirecto da nossa forma condicionada de ver e de agir. Outra ainda, as várias dinâmicas que realmente estarão a ocorrer.

AFASTADOS UNS DOS OUTROS por um longo período de tempo, desconfiados até de um espirro inofensivo como no tempo da Peste, com o vazio trazido pela perda de identidade individual e colectiva devido ao rosto tapado e inexpressivo, estaremos perante uma fase de quebra generalizada na confiança em nós mesmos, na vida, no futuro.

Haverá, assim, um enfraquecimento no questionamento das informações que nos são transmitidas. Seja por excesso de repetição, por pressão social, devido ao isolamento que marcou 2020, ou pelo impacto na economia e consequente sentimento de vulnerabilidade. Os rebeldes estarão cada vez mais ordeiros, o que é uma perda irreparável para a Humanidade, que sempre avançou graças aos que não se conformaram.

Teremos todas as condições reunidas para a vida avançar, mas aperceber-nos-emos realmente disso? Nada nos faltará em 2021 a não ser a ousadia de agarrar a vida pelos colarinhos, de arriscar a pele.

Como se tivéssemos acabado de sair de uma guerra, iremos avaliar cada passo antes de avançar, sempre na zona de segurança porque-nunca-se-sabe. A Humanidade estará meio morta mesmo estando viva, com a Natureza a espreitar-nos à janela, e hesitante em tomar parte no milagre que está a acontecer.

Claro que todos corremos o risco de morrer de COVID. Ou de qualquer outra maleita, acidente, catástrofe natural, de velhice ou por causas misteriosas. O que deveria servir de incentivo para abraçar a magia que é estarmos vivos parece ser, na verdade, um impedimento à vida. 

E não viver por medo de morrer é uma negação da própria vida.

O MEDO, QUANDO DOMINA, recria a paralisia da morte. É um travão da vida — mas não do tempo. O tempo, esse vilão sem coração, não espera que ganhemos coragem ou que prestemos atenção à sua passagem. Nem o Sol, nem a Lua, a chuva, as estações do ano, as andorinhas que voltam na Primavera e que partem após o fim do Estio. Tudo está como deve estar, a decorrer normalmente, e assim continuará, quer tomemos ou não parte da vida e dos seus ciclos.

2021 será um ano maravilhoso, cheio de novas oportunidades. Felizes os que não tiverem perdido a ousadia de viver, os rebeldes, os que arriscarem novos caminhos. 

A normalidade nunca será reposta — e ainda bem. Pois estar dentro do que é “normal” é seguir uma norma que outros definiram, encaixando-nos, formatados, normalizados, resignados, numa forma que moldaram para nós. É não questionar, e abdicar do infinito mundo de possibilidades que se encontra disponível para além das fronteiras da ‘normalidade’.

O primeiro semestre será ainda um período de recuperação do trauma deixado pela mudança de paradigma no ano 2020. Vamos precisar de tempo para voltar a confiar na vida, em nós mesmos, uns nos outros, e no desconhecido que nos espera. Mas muitos vão conseguir.

O uso de máscara será gradualmente facultativo e as novas vacinas irão dar que falar. O regresso dos eventos com público, como concertos, espectáculos e outros similares, retornará aos poucos, mas com menor afluência de pessoas. O medo demorará a desaparecer totalmente, até porque já faz parte da Humanidade desde, pelo menos, o Paleolítico Inferior.

O segundo semestre será mais leve e, ainda que a medida de tempo seja igual, os seis meses que encerrarão 2021 fluirão com maior celeridade que os primeiros. Não porque os ponteiros dos relógios avancem mais depressa, mas porque estaremos finalmente a começar a confiar na vida. 

Quem viver, verá.

Hazel
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Foto por: José Cavaco

Janela Aberta para o Mundo


DA MINHA BOCA abriu-se uma janela. As portadas de madeira pintadas de branco encostam-se-me ao de leve nas maçãs do rosto. Vejo o céu azul lá fora, de um azul tão livre, tão limpo como o mar das ilhas gregas onde as sereias namoram com os pescadores nas tardes de Sol sem fim. As cortinas serpenteiam ao vento em asas de gaivota. 

Pousam os pardais nas portadas brancas e o seu chilrear entra sem pedir licença, transformando-se em crianças pequeninas e curiosas que exploram todos os lugares recônditos e secretos dentro da minha boca à procura de tesouros. Na sua inocência, não sabem que trazem aquilo que buscam —, a vida

Batem as portas das gaiolas contra as paredes e alarga-se a janela que se me abriu na boca, rasgando paredes, tecidos, pele, carne, veias, mordaças, amarras. E voam em liberdade aves-do-paraíso de-todas-as-cores-que-o-mundo-já-viu e de muitas outras que ainda não foram inventadas. 

Os cadernos que repousavam nas gavetas voam janela-fora como pássaros de asas abertas, que o vento folheia, lendo em assobios as histórias que lá escrevi. Rasgam-se as páginas e espalham-se em sementes pelos campos. As minhas palavras despontam em papoilas e malmequeres, em árvores de fruto, em flores de jasmim e ervas aromáticas e plantas medicinais. 

VOAM de dentro da garganta as gaiolas agora vazias. Voa a poeira, o cotão, os fantasmas, as almas penadas, os demónios, os medos, os pesadelos. Liquefazem-se numa chuvada que sacia a sede da terra, que nutre e movimenta todos os influxos da Natureza e dos seres humanos.

Pela janela da minha boca entram as vozes frescas das pessoas que conversam na rua, o choro dos bebés acabados de nascer, o barulho dos carros, a sineta da bicicleta. 

O Sol doce transborda por todas as divisões numa torrente de luz dourada, de sumo de laranjas quentes amadurecidas no mês de Agosto e manteiga derretida em torradas fumegantes feitas pelas mãos das avós. 

Expiro o cheiro do mofo e das roupas velhas guardadas em baús esquecidos. Estilhaça-se o silêncio, seca a humidade nas paredes, que se pintam agora de cores novas e limpas. Acendem-se luzes. Ouve-se música. 

E a janela torna-se maior que a minha boca. 

Estende-se por todo rosto. Toda a cabeça. Chega-me aos braços, às mãos, às pontas dos dedos. Desce-me pelo peito, pelas pernas, os pés. Elevo os braços, toda eu sou janela. Atravesso-a. Atravesso-me a mim mesma. 

Sou maior que a janela. Não, sou mais pequena que a janela. Também não, sou só a luz que entra na janela. Só a luz. Só a luz. Só a luz.

O arcano O Mundo dá-nos as boas-vindas a um inimaginável mundo novo, um novo paradigma, contudo parido por nós, dado-à-luz, depois de todas as aprendizagens concluídas, e introduz-nos agora num novo capítulo, mais pleno e sábio, com novos mistérios, novas etapas. 

Tudo o que vemos no exterior, começa sempre no nosso interior. Nos olhos, na percepção. Vejamos, pois, o dealbar dos tempos que se seguem com os olhos mais limpos e sábios que nos for possível. Este é o novo mundo.

De janelas abertas,

Hazel

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Foto: Hazel, por Manuel Cardoso


O Exercício da Indiferença



Tento esconder o ramo que se assoma de dentro da manga do casaco, empurrando-o de forma desajeitada antes que alguém veja. Espero que ninguém tenha reparado. 

Um restolhar igual ao que se escuta quando caminhamos pelos bosques no Outono persegue-me enquanto fujo do café, trapalhona e à pressa, deixando um rasto denunciador de folhas secas caídas pelo chão. 

Não contem a ninguém, por tudo o que há de mais sagrado, mas o que se passa é que me nasceu uma árvore. Não num vaso, nem numa floreira — , mas em mim

Começou por um raminho tímido e tenro que me brotou mesmo no centro do coração, espreitando à volta como quem não entende que estranhas voltas deram os ventos para levarem a semente que lhe deu origem a tão profundo solo. 

Os meus olhos escancararam-se de espanto. E agora, que fazer? 
Abri a gaveta da cozinha e peguei numa tesoura decidida a cortá-lo e guardar só para mim este segredo absurdo até ao último dos meus dias. 

Quando a lâmina encostou no ramo, perdi a coragem. Um ramo tão pequenino, quase sem raiz, que mal poderia trazer ao mundo. Que culpa teve por nascer logo no meu coração. Acarinhei a pequenina árvore como um bebé. Tomei-a como minha. 

A sede tornou-se mais intensa no correr dos dias. Uma sede específica que não poderia ser saciada com água-da-torneira. Tinha que vir das nascentes. Ou da chuva. Água viva, fresca, que se move continuamente nos influxos da Natureza. 

As raízes começaram a mergulhar-me pernas abaixo até aos pés. A árvore foi crescendo, com os ramos a serpentearem-me em torno das costas, a espreitar atrevidos de dentro do decote e a revelarem-se de baixo das saias como uma embaraçosa cauda com folhas. 

Tenho pássaros e ninhos nos ramos que me enchem os cabelos. Dois frutos suspendem-se em brincos nas orelhas. Pelos meus olhos espreita a alma da árvore. Viro-me para o Sol, danço ao vento e no silêncio da meia-noite consigo ouvir a seiva correr-me nas veias como um rio, e pulsar como o bater do coração.

Esta árvore que um dia quis cortar por não saber o que fazer com ela, tornou-se maior que eu. São muitos os dias que passo abrigada sob os seus ramos a escutar as lições que me vai ensinando na mansidão do seu silêncio verde. 

Com ela aprendi o Exercício da Indiferença

Nada externo pode perturbar uma árvore. Não existe sequer a diferença entre o bom e o mau, pois ambos são indiferentes, logo, iguais.

Quando vieram as tempestades, levaram-me as folhas, mas sobraram os ramos.
Quando quebraram os ramos, restou o tronco.
Quando o tronco ardeu, ficaram as raízes.
Quando as raízes secaram por falta de água, permaneceram as sementes dos frutos — e delas nasceu novamente a árvore, que anda comigo escondida por baixo da roupa, sob a pele, para todo o lado onde vou.

Uma árvore é-o de dentro para fora. Logo, através da ligação com o interior, o cerne, o exterior é todo ele um reflexo de paz. 

Note-se que Indiferença não é ausência de compaixão. Pelo contrário. Significa que, haja o que houver, continua a existir sombra fresca, oxigénio, pássaros e ninhos, folhas, flores e frutos, e as sementes que caem no solo e permitem o constante ciclo morte - renascimento - vida - dádiva - morte - renascimento. 

A Indiferença é a janela da Paz que permite que a dádiva da vida seja contínua. É o equilíbrio entre o movimento e as forças, uma dimensão sem começo nem fim, que transcende as leis do espaço-tempo. O caminho para alcançá-la é a renúncia ao atrito, e a percepção da unidade com a realidade interna. 

Plácido como a árvore, o arcano A Temperança leva-nos à arte da auto-observação amadurecida no silêncio e à compreensão dos mistérios interiores para sublimar intempéries passadas, com a limpeza de uma boa chuvada: sem dor nem trauma. 

Sob os ramos,

Hazel
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Foto: Fernando Gonçalves / Modelo: Hazel Evangelista 

Siga aquele Táxi


"Vai ficar com medo de sofrer para o resto da vida? Então, mas não é o medo de sofrer também uma forma de sofrimento?"

Nisto, o condutor do táxi Mercedes interrompeu-se e guinou para a direita desviando-se do carro cinzento-tédio que apareceu inesperadamente pela esquerda sem respeitar prioridades.

A expressão pacífica e enigmática de sábio-das-montanhas diluiu-se à medida que o seu rosto se agudizou em tensão perante o quase-embate.

São dezasseis euros. As notas e moedas deslizam em silêncio para a mão áspera do taxista conhecido por adivinhar o futuro dos passageiros.

A porta abriu-se com um rangido e todo o céu parece também apartar-se enquanto as nuvens se afastam.

As botas castanhas caminham para fora do veículo, reflectidas nos pequenos lagos espelhados de água da chuva e colocam-se em bicos-de-pés, acercadas pelos ténis verde-musgo, num abraço daqueles em que os corações encostam directamente um no outro.

— Correu bem a viagem? Deixa, que eu levo a tua mala.

Se foram felizes para sempre não sabemos. Mas tiveram a coragem de tentar.

O arcano Sete de Paus confronta-nos com as sombras dos medos que-não-têm-razão-de-ser, para nos ensinar que sofrer de medo é uma forma de antecipar um sofrimento que pode nunca acontecer. É viver uma realidade paralela, pessimista e ilusória.

Corra o risco. O que há a perder, senão o sofrimento que já tem por medo de sofrer?

Hazel
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Obsessão


Roubei uma colher de sopa. Está escondida debaixo do meu colchão. Quando vêm mudar os lençóis, coloco-a atrás da sanita. Esta colher, que tenho há duas semanas, é o meu passaporte para a liberdade.

Na parede junto à cama há um ponto de maior fragilidade onde todos os dias escavo com a colher, lenta e pacientemente, para que o meu cárcere — que sou eu — não descubra o plano de fuga. Para não levantar suspeitas, vou comendo a terra e o estuque (não sabe pior que salada de beterraba crua, garanto-vos). Mas fui apanhado.

Sacudi a terra da cara com duas lambadas que dei a mim mesmo, peguei-me por um braço e lancei-me para a solitária. De castigo por ter tentado fugir de mim, para reflectir sobre o crime que me levou à clausura. Um crime que neguei, como todos os culpados que procuram desesperadamente uma absolvição que não merecem, e escapar à condenação.

A obsessão é uma prisão onde o cárcere e o carcereiro são a mesma pessoa. Encontro-me aprisionado em mim mesmo. Condenado por crime nenhum, cumpro pena por tempo indeterminado.

No julgamento, o juiz era eu. O advogado de acusação era eu. O advogado de defesa era eu. Os jurados eram eu. O guarda que segurava as algemas à porta do tribunal era eu. E o réu, cabisbaixo, mortificado pelas penas que caíam de si para si — era eu.

Tudo me assombra o pensamento em imagens fractais, como uma sala de espelhos e vidros recortados, na solidão da solitária, onde um raio de luz tímido é o último fio de lucidez que me resta.

A minha sombra espalha-se parede acima até se diluir na penumbra. Estendo-lhe a mão. Olhamo-nos nos olhos. Perdoamo-nos.

Abatido de cansaço, encolho-me deitado no chão de pedra fria à espera da manhã, com a sombra sentada a lado velando-me o sono.

O despertador pousado na mesa-de-cabeceira acorda-me ao raiar dos primeiros alvores. Os vizinhos conversam debaixo da minha varanda.

— Sonhaste esta noite?
— Sonhei, mas não me lembro sobre o quê — respondo à minha mulher.

Saio de guarda-chuva aberto, a caminho do trabalho. Atrás de mim, sem que eu note, caminham as sombras desdobradas pela estrada fora: o carcereiro, o juiz, os jurados, os advogados, o guarda.

O arcano O Diabo projecta-nos as sombras mais secretas na parede, numa dança diabólica de tempos e contratempos estonteantes que, ora nos iludem o ego, ora o deitam por terra. 

Por mais que tentemos agarrar-nos à verdade absoluta como se da nossa colher de sopa se tratasse, é precisamente a capacidade de questionar, de duvidar, de aceitar luz e sombra sem negar nenhuma que nos trará a libertação da clausura do ego.

Hazel
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Hospital de Corações


ACABEI DE INVENTAR  ESTE NOME. Quem está doente do corpo vai para o hospital “comum”, quem está doente da cabeça vai para o hospital psiquiátrico e quem está doente do coração vai para o Hospital de Corações.

É um edifício semelhante aos outros por fora, mas com pessoas mais simpáticas e cuidadosas. Todo o staff usa sapatinhos de lã, roupa colorida e também faz parte do equipamento um medidor de dores de coração em vez do vulgar estetoscópio. Neste serviço curam-se mágoas, angústias, tristezas e desgostos de amor.

Os corredores são forrados de algodão até ao tecto e o chão tem relva macia e perfumada. Nas enfermarias, os pássaros trazem gotas de madressilva no bico que vão depositando mililitro a mililitro nas feridas expostas. Aqui o Betadine não tem serventia.

Os pacientes magoados são aconchegados em lençóis de asa de pássaro e fecham os olhos durante muito tempo até se sentirem capazes de voltar a abri-los sem perigo de desidratação devido aos ribeiros que deles transbordam em águas contaminadas. É preciso limpar, secar, repousar e, acima de tudo, abrandar o ritmo dos batimentos cardíacos que cavalgam desenfreadamente pelos campos pedregosos da dor.

Na hora das refeições, serve-se tempo em modestos tabuleiros. Puré de tempo com escalopes de tempo, salada de tempo e, para beber, tempo espremido. Os pacientes não gostam do cardápio, mas é o único que realmente pode ajudar. A dieta do tempo, além de desinteressante e insípida, ainda tem a terrível desvantagem de ter de ser seguida durante muito tempo.

Não existe roupa para os pacientes no Hospital dos Corações. Andam nus, despojados de tudo o que possa causar ainda mais peso para além daquele que já transportam. Apenas as asas de pássaro servem de agasalho nas noites mais frias e solitárias, onde se ouve o eco do choro e o gemido da dor abafado nas almofadas. Mas há-de passar, tudo passa um dia, com a ajuda do Doutor Passarinho. Ei-lo a entrar agora no gabinete de medidor de dor de coração pendurado no bico para auscultar mais uma paciente que acabou de dar entrada.

Chama-se Hazel e vai ficar na cama cinco, junto à janela. Um bando de pássaros-enfermeiros faz-se acompanhar dos auxiliares em sapatinhos de lã para ajudar a recolher as águas que lhe escorrem dos olhos. A cura vai demorar. Submetida à dieta do tempo, a paciente debate-se e implora por uma anestesia geral ou a eutanásia, mas ambas lhe são recusadas. Terá de aguentar. Terá de conseguir.

O arcano Três de Espadas diz-nos que por muito que doa, um dia tudo acabará por passar. Quando? Não sei. Mas não pode haver tempestade que dure para sempre.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1688
foto: Comfreak, licença CC0

Para uns Anjo, para outros pior que Belzebú


Fugiram-me duas velas de casa. Tinha-as em cima da mesa de jantar, cada qual no seu castiçal, e desapareceram sem deixar pingo de cera nem de remorso. Corri atrás delas rua fora, mas no primeiro cruzamento virou uma para cada lado. As danadas. Voltei para casa de mãos a abanar.

Coloquei um anúncio no Encontra-me. Entre cães e gatos desaparecidos, lá estavam as minhas velas. Ambas brancas e simples, uma acesa e outra apagada. Ofereci alvíssaras a quem mas trouxesse de boa saúde e ainda por derreter.

Estas são velas especiais, têm de compreender. Velas que falam, que pensam, que têm opiniões e caprichos. Andaram desaparecidas durante vários dias e noites até finalmente dar com elas estafadas, caídas à porta de casa. A vizinha da frente levantou uma sobrancelha julgando que se tratasse de alguma reles feitiçaria, mas expliquei-lhe que “não, vizinha, isto são só as velhacas das minhas velas que me tinham fugido.”

Entraram de pavio tombado para a frente, receosas do ralhete que iriam levar. Encaixaram-se muito direitas e compenetradas nos castiçais enquanto viam puxar de uma cadeira para ouvir o que tinham a contar sobre a inusitada evasão.

Começou a acesa a falar. Vinha maravilhada. Por todas as ruas onde tinha passado, encontrou luz: reflectida nas montras das lojas, a cintilar nas paragens de autocarro, nos carros que circulavam na estrada; a dançar nos olhos das pessoas que cruzaram o seu caminho. Jamais imaginaria que houvesse tanta beleza no mundo, suspirava encantada.

Seguiu-se a apagada. Num suspiro profundo e tristíssimo, lamentou a malograda saída. Sentiu-se perdida, desajustada nas ruas afundadas em trevas. As pessoas eram obscuras e sinistras, tudo era desinteressante, escuro e vil. Nunca encontrou uma réstia de luz.

Homessa, que tontas, disse-lhes, enquanto fui buscar um espelho para colocar à frente dos castiçais, aquilo que viram foi uma projecção da vossa própria luz. Ou da ausência dela.

A acesa sorriu enternecida. Amolecida pelo calor inclinou-se para o lado e acendeu a companheira apagada que num segundo começou a irradiar luz, alívio e alegria. Prometeram não tornar a fugir.

Nós somos para os outros um reflexo daquilo que eles são. Para os detentores de luz, teremos sempre alguma luz e virtude. Para os mais sombrios, seremos vício e escuridão.

Aqueles que nos olham com bondade encontrá-la-ão também em nós; seremos anjos para esses — e piores que o belzebú para os outros. Deixá-los ver-nos com os olhos que têm, que importa lá isso. O arcano Rei de Paus inspira-nos a não parar de brilhar — e iluminar aqueles que se cruzam connosco.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1687
Imagem: licença CC0

A louca da camisa de dormir


A louca da camisa-de-dormir todos os dias faz o mesmo percurso que se cruza com o meu, ora de manhã, ora pela tardinha. Contemplo a visão onírica da senhora de meia-idade que atravessa a estrada sem pressa, a chinelar nas suas chanatas de quarto com borlas emplumadas em seda rosa-pétala, cabelos de nuvem e às vezes um robe puído sobre a camisa-de-dormir comprida.

Há no seu semblante triste a beleza silenciosamente desesperada e suspensa no tempo de uma mulher que naufragou e não pára de nadar mesmo sem mar entre as vagas dos dias que se sucedem — sem nunca chegar a terra.

Não usa chapéu para se proteger da chuva — parece mesmo não a sentir. Caminha de olhos fixos no vazio e mãos caídas. Vejo nela o avesso de nós, que saímos de casa vestidos, aprumados, ordenados e perfumados.

Ou talvez sejamos nós o avesso dela. 

Quando regressamos a casa, libertamo-nos dos atavios sociais e vestimos a roupa-de-andar-por-casa, que costuma ser confortavelmente triste e gasta, às vezes tem nódoas que não saem, está debotada e pingona, mas somos incapazes de a deitar fora.

A roupa-de-andar-por-casa é o sorriso que esmorece pelo cansaço ou pelo enfado da rotina. A maquilhagem que cai desmaiada nas olheiras, os cabelos desalinhados, as unhas dos pés compridas, os chinelos velhos e um pouco — ou muito — fedorentos, que cheiram a casa, a conforto e a amparo.

A voz áspera do catarro, a rabugice do Domingo à noite, o ranho a espreitar das narinas dos gaiatos, as caretas que fazemos para o espelho quando vamos a caminho do duche pela manhã. A suposta ausência de beleza a que nos permitimos entregar — e onde repousamos — quando nos sentimos seguros e protegidos do olhar alheio.

É a verdade do que somos, com os nossos maus cheiros, pêlos que despontam bravios onde menos queremos, cabelos oleosos junto à raiz e aquele bocadinho de sujo debaixo das unhas — a crua humanidade que não nos atrevemos a partilhar senão com aqueles que sabemos que vão amar-nos por completo.

O arcano Sete de Espadas aponta-nos para as nossas roupas de andar-por-casa e de andar-na-rua, para as mentiras que contamos ao mundo e a nós mesmos. Todos mentimos. Até o mais honesto de nós. Porque se mostrássemos toda a verdade como ela é, seríamos para os outros uma louca em camisa-de-dormir.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1686

Quatro Casamentos e Três Funerais


A respeito do cartaz “Não matem os velhinhos”, lembrei-me de uma gaiata que conheci, bem mai’nova e desempoeirada que a sirigaita da frase. Sorridente e surpreendente no seu batom vermelho-malagueta e óculos-escuros-femme-fatale, assentia com a cabeça enquanto escutava a sua história ser-me contada pela amiga que fez as apresentações.

Que a jovem contava oitenta e duas primaveras. Sorri com admiração, duas vezes a minha idade.

Que o marido tinha morrido havia meia-dúzia de anos num acidente de viação; que era ela quem estava ao volante. O meu sorriso logo esmoreceu, dando lugar ao silêncio respeitoso, compadecido e atrapalhado de quem ficou subitamente sem saber como reagir.

Mas que continuava a conduzir. E que entretanto tinha casado novamente havia poucos meses, lançava a entusiástica amiga enquanto a moça de oitenta e dois anos ia acenando com a cabeça numa expressão travessa. O meu sorriso voltou aos poucos a estender-se aliviado, ora bem, a vida continua, está certo, tem que ser assim.

Que era a quarta vez que casava. As minhas sobrancelhas subiram em espanto.
E todos pela igreja. Homessa, como?, indaguei. Eles morrem todos!, exclamou sem grama-de-drama. Não aguentei. Levei as mãos à cabeça e ri-me incrédula. Os lábios vermelho-malagueta riram também, da tragicomédia que por vezes é a vida; e que se apresentava ali, simples, despreocupada e limpa na doce e divertida senhora que vivera o dobro de mim.

Compreendi no seu riso que não havia tempo a perder, culpas carregar, tristezas a alimentar, dramas para chorar. Havia tão somente um ponteiro de tempo a marcar tiquetaque e um apetite voraz pela vida como o de uma criança que apenas quer os doces sem passar pela sopa e pela salada. Tudo é relativizado. As tragédias, o que os outros pensam, as preocupações, os medos. Só há tempo para o agora e para a verdade que, no fundo, são quase sinónimos um do outro.

Ajudei-a a subir as escadas depois da consulta. Os olhos brilhavam-lhe. Ia com pressa, afinal estava casada há pouco tempo e o corajoso marido desafiador das funestas estatísticas esperava-a em casa. Despedi-me grata pelo privilégio da aprendizagem que trouxe aquele sorriso vermelho-malagueta, com uma admiração e afecto que duram até hoje.

O arcano Ás de Paus aponta-nos a luz da vida e diz-nos que podemos fazer com ela tudo aquilo que quisermos, a qualquer momento. E que bom que é. Tenhamos a idade que tivermos. Aconteça o que acontecer. Só depende de nós. Mesmo que os outros não entendam as escolhas imprevisíveis ou fora do que é considerado “normal”.

Que a centelha divina possa brilhar enquanto houver caminho para andar. Os velhinhos já não são como antigamente; estão mais vivos, mais rebeldes e mais jovens que muitos jovens que andam por aí a passear cartazes.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1685
foto: Mansellgrl5, licença cc0

Numa Casa Portuguesa Fica Bem...


Ser português é sinónimo de ter um conjunto de pratos impecável no armário (que apenas é usado quando vêm visitas) e outro, já velho-gasto-e-possivelmente-lascado, que é o do dia-a-dia. Quem diz pratos, diz copos, toalhas de mesa ou as almofadas do sofá, que se viram ao contrário para “o lado das visitas” escondendo as nódoas na parte de baixo. Porque se os outros não virem as nossas mazelas, elas “não existem”. Não digam que não.

Temos aversão (para não dizer pavor) a parecer mal aos olhos dos outros e poupamos a-mais-fina-loiça para que as visitas, recebidas com uma cerimónia nunca assumida, vejam apenas o melhor — e não o real. Para “os de casa” usamos os pratos velhos, como se não merecêssemos o melhor que há no nosso próprio armário de cozinha. Homessa. Porque seremos nós assim?

Após profunda introspecção, a vossa velha escriba concluiu que a casa onde vivemos é um ser vivo e comunica como se fosse uma contraparte dos seus habitantes. Por exemplo, o conteúdo do armário onde guardamos os pratos pode ser, em muitos aspectos, semelhante ao interior do nosso coração:

1. Se existir uma infinidade de loiças, novas e antigas, demasiadas para o espaço existente, pode revelar um coração cheio de apegos, preso ao passado;

2. Ter um conjunto de pratos para o dia-a-dia e outro para as visitas, dir-se-ia que sugere incapacidade ou dificuldade em entregar-se de corpo e alma, sem reservas, na amizade, mantendo sempre um pé atrás;

3. Um conjunto de loiça para as visitas, outro para o dia-a-dia e ainda outro terceiro que ocupa um lugar "intermédio", falta de amor por si mesmo, crença de que não é digno do melhor.

Ai, Senhores. Pára tudo. Vou ali à cozinha ver o meu armário.

(Voltei!)

Esta é a história dos meus pratos: já tive dois conjuntos, um do dia-a-dia e outro das visitas (admito com algum embaraço). Entretanto, as transformações que a vida me trouxe levaram a que acabasse por ter no meu armário apenas alguns pratos soltos, restos de outros conjuntos, com um ou outro lascado. Destroços do passado e um coração partido.

Quando tomei consciência desta correlação, um dia desfiz-me dos pratos soltos e lascados e comprei um conjunto de pratos brancos. Simples, humilde e novinho em folha. Era tempo de deixar para trás o que estava atrás e de abraçar o presente.

Porém, o coração continuou partido. Na verdade, ainda está. Mesmo com pratos novos. Mesmo com refeições felizes. Creio que, como um prato fica lascado para sempre, um coração partido nunca mais volta a ficar inteiro. E ninguém garante que não se volte a quebrar ainda mais, em pedaços menores.

Contudo, não foi debalde a libertação dos pratos soltos e maltratados, pois representou o desejo e a possibilidade de recomeçar. E o facto de não ter comprado um conjunto extra de pratos, significa que não tenho um plano B. O que está à vista é o que há.

O arcano A Lua inspira-nos a adaptar-nos às diferentes fases que a vida traz, sem cair na armadilha de alimentar ilusões. Tudo é mutável, sensível, inconstante e tão frágil como um prato de loiça que cai no chão.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1684

O Vazio


A campainha está a tocar, vou ali abrir a porta: são os senhores que vêm instalar um contador bi-horário. Façam favor de entrar, é por aqui. Diz que é raro terem pedidos destes, que os últimos contadores do género foram instalados há muitos anos num mosteiro perdido no nevoeiro lá para as bandas do Nepal.

Hoje em dia toda a gente anda sempre ocupada com alguma coisa e as horas de vazio não despertam o interesse de ninguém, esclarece o sujeito mais alto enquanto ajuda o colega a tirar o contador bi-horário da caixa.

Isso não é de hoje, afianço-lhes. Senão, vejamos: antigamente, quando as pessoas iam à casa-de-banho, liam de-fio-a-pavio os rótulos dos frascos de shampô, do gel de banho, do ambientador; havia os que se entretinham com livros de banda-desenhada, com a literatura médica de alguma caixa de comprimidos que se encontrasse por perto — no fundo, tudo o que estivesse no perímetro de um braço estendido em torno do trono.

Hoje levam o telemóvel, a partir de onde enviam emails, sms, partilham fotografias, não perdem pitada das polémicas do dia nas redes sociais —, como quem depende de um fio invisível que o agarre ao mundo cá fora.

Sempre houve a necessidade de ter alguma âncora onde se possa prender a atenção — e que salve a Humanidade, apavorada com a perspectiva do vazio, de se deparar com ele. Assim, olhamos para fora — e nunca para dentro.

Ora bem, já está instalado o contador bi-horário. Só uma assinatura aqui em baixo, menina Hazel, se faz favor. Obrigado e um bom dia.

Fecho a porta satisfeita com o contador bi-horário novinho em folha instalado mesmo em cima da minha cabeça. Tudo para poupar, que o valor da energia anda pela hora da morte.

Planeio usufruir de uma hora de tarifa de vazio uma vez por semana. Sessenta minutos de telemóvel e computador desligados (não referi televisão porque não tenho) e, sem gente a atazanar-me o juízo, pretendo sentar-me e ficar dignamente a olhar no vazio.

Uma hora que, conto, será muito produtiva, pois, em vez de despender energia em tudo e todos, estarei a recarregá-la (sem perigo de electrocussão caso me distraia e entre em sobredosagem se deixar passar mais um quarto-de-hora ou pedaço de tempo que me valha).

Perscrutar o vazio em absoluta ausência de emoções pode parecer o equivalente a contemplar o abismo vertiginoso ou um poço sem fundo, mas há pouco espreitei para lá e pareceu-me seguro e arejado.

Confrontá-lo não me fez sentir vazia, mas preenchida, centrada. Capaz de reclamar todos os pedaços de mim que perdi por aí em angústias e preocupações, em mágoas e excessos de paixão, em dar mais do que recebi, em esperar e desesperar, em imaginar e desimaginar.

Reclamo-os e reintegro-os no meu vazio, no silêncio e na solidão, na paz absoluta.
Só então voltarei à tarifa de fora de vazio.

O arcano O Eremita envia notícias para o mundo através de um pombo-correio que pousou na minha janela. Trazia na pata uma mensagem que desenrolei com cuidado. Estava vazia.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1683

Sabes que estás a ficar velho quando


Esta dor que hoje me tem apoquentado a zona fronteiriça entre o fundo das costas e o começo das nádegas concebe previsões meteorológicas com maior exactidão que o ido Anthímio de Azevedo. Amanhã vai estar fresco, algumas nuvens e o Sol vai andar acabrunhado, diz-me.

Tenho conversado com ela; todas as dores vêm para ensinar e quanto mais depressa aprender a lição, mais asinha a mestra parte em busca de novo pupilo. É uma dor velha, muito idosa, que veio visitar-me por um dia — amanhã diz que já se vai embora.

Ofereceu-se para me ensinar a fazer crochet, renda-de-bilros e bordado em ponto-cruz. Declinei cordialmente o obséquio, não fosse ela tornar-se hóspede permanente.

Vencida e de malas aviadas para partir pela calada da noite, enquanto durmo o sono dos justos de pijama-às-riscas e cabelo entrançado, a velha dor deixou-me de presente a sabedoria dos ditados populares, essas verdades-indiscutíveis-e-cientificamente-provadas que tenho dado por mim a dizer aos mais novos.

Foi neste momento que me descobri velha como uma relíquia empoeirada de museu, hortaliça murcha, par de botas fedorentas que já palmilharam meio mundo e sabem todos os atalhos, caminhos e azinhagas.

Como sou uma boa velhaca, descobri que este mal é contagioso: começa-se a memorizar provérbios e depois passamo-los aos outros sem apelo nem agravo. Como a maleita proverbial tem andado em recessão (quem é que os cita hoje em dia?), resolvi disseminá-la em grande escala. Ora tomem disto:

— Depois do Natal, dá o dia um saltinho de pardal.

— Calças brancas em Janeiro, sinal de pouco dinheiro.

— No mês de Janeiro sobe ao outeiro para ver o nevoeiro.

— Janeiro fora, cresce o dia uma hora.

— Fevereiro engana a velha ao soalheiro.

— Em Fevereiro, salto de carneiro.

— Fevereiro quente traz o diabo no ventre.

— Março, marçagão, de manhã é Inverno e à tarde Verão.

— Em Março sobe ao outeiro, se vires verdejar, põe-te a chorar, se vires nevar, põe-te a cantar.

— Páscoa em Março, ou fome ou mortaço.

— Março, marçagão, de manhã cara de gato, à tarde cara de cão.

— Abril, águas mil, coadas por um mandil.

— Em Março tanto durmo como faço.

— Abril frio e molhado, enche a tulha e farta o gado.

— Uma água de Maio e três de Abril, valem por mil.

— Em Maio, cereja ao borralho.

— Água de Maio, pão para todo o ano.

— Em Maio, canta o gaio.

— Maio claro e ventoso, faz o ano rendoso.

— O que Janeiro deixa nado, Maio deixa espigado.

— Agosto, mês de desgosto.

— Não há Sábado sem sol, Domingo sem missa nem Segunda sem preguiça.

— A velha que bem governou, o melhor tição para Maio o deixou.

— Em Agosto todo o fruto tem o seu gosto.

— Uma andorinha não faz o Verão.

— Em Agosto frio no rosto.

— Em Dezembro descansar para em Janeiro trabalhar.

O arcano A Sacerdotisa inspira-nos a virar as páginas do tempo, a fazer uso da sabedoria que adquirimos e a nutri-la discreta e incessantemente, numa gestação silenciosa. Sabemos sempre a resposta que precisamos, mesmo quando achamos que não. Basta escutar o que as nossas dores têm para ensinar.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1682
Foto: geralt, licença CC0

"Segure-me aqui a Língua desta Menina."


Foi na Primavera tensa de mil-nove-e-noventa-e-nove que uma malfadada espinha de carapau me escorregou através da glote e se espetou bem lá no fundo da garganta.

(Se é sensível a descrições de teor visceral, não leia mais. Embora haja piores.)

Tentei tossir, mas não saiu. Comi pedaços de pão inteiro, na esperança de empurrá-la aparelho digestivo abaixo, e-depois-logo-se-via (tentando desviar a memória daquela tia-avó que um dia foi parar ao Hospital com uma espinha de bacalhau atravessada no reto). — Nada.

Deitei-me desejando que a espinha demoníaca desaparecesse milagrosamente e tudo não tivesse passado de um sonho menos bom quando acordasse. A manhã chegou e, com ela — a facínora. Tomei duche com a espinha. Vesti-me com a espinha. Fui trabalhar com a espinha. Ao fim do dia, dei-me por vencida. Fui ao Hospital.

A funcionária da entrada parecia farejar algo embaraçoso no motivo da minha ida às Urgências, a avaliar pelo meu aspecto saudável e ao mesmo tempo inegavelmente acanhado. Não, não tinha objectos entalados nas cavidades vaginal nem anal (apre!).

Tenho uma espinha espetada na garganta — sussurrei.
Tem o quê? — rosnava a redonda senhora com olhos maliciosos, de dentro do guichet. A fina arte da velhacaria consiste em fazerem-nos repetir em bom som, numa sala cheia de pessoas atentas, o motivo do nosso embaraço.

TENHO UMA ESPINHA ESPETADA NA GARGANTA — respondi, agora alto, para deleite da curiosidade mórbida que me rodeava.

Fui atendida pelo Otorrinolaringologista, um sujeito de bigode fininho, calma anestésica e paciência infinita, que espreitou cá para dentro decidindo mentalmente que instrumentos (de tortura) iria utilizar. Chamou o enfermeiro:

— Segure-me aqui a língua desta menina.

O jovem enfermeiro arrepanhou-me a língua enquanto o médico segurava uma pinça suficientemente grande para agarrar a parte mais larga da tromba de um elefante.

Conforme a pinça zoológica abria caminho goela abaixo, constatei no quão parecidos os humanos podem ser com os gatos em espasmos pré-vómito. Julguei que fosse vomitar na cara do enfermeiro que me continuava a esticar a língua como se fosse a passadeira vermelha dos Óscares.

Foram várias as investidas para chegar à espinha. As lágrimas escorriam-me pelos cantos dos olhos, enquanto tentava encontrar algum lado positivo naquilo, “vai que tinha ficado espetada à saída”.

Por fim, a super-mega-pinça caçou a diaba. Depois de tanto tempo enterrada nas minhas carnes tenrinhas e indefesas, esperava uma espinha gigante. Tinha menos de um centímetro. Muito pequenina. Mas velhaca, bem velhaca, a danada.

Ainda olho os carapaus com um desprezo que mais ninguém entende, a não ser a minha glote, que ainda guarda memórias funestas.

O arcano Cavaleiro de Paus recorda-nos que nada é definitivo. Em particular, quando se trata de algo que sabemos não pertencer onde está. É sempre melhor moderar os impulsos e degustar os prazeres da vida com algum cuidado.

Tudo o que não se encontra na sua devida natureza, mais tarde ou mais cedo acabará por partir. Restam as experiências vividas, a aprendizagem e o desapego.

A sentir-me um autêntico carapau-de-corrida,

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1681

A Página Cento-e-Oito


Entrou pela janela ao fim da tarde, lançada por uma rabanada de vento que derrubou o porta-retratos. Os olhos do gato, que acordou assarapantado, seguiram a queda lenta até aos meus pés de uma folha que se enrolou sobre si como as rosas-de-Jericó quando rolam pelas areias quentes do deserto.

Tentei atirá-la pela janela, mas os zéfiros sopraram-na de volta, contra o meu peito. Está bem, fico contigo. Deixei-a cair com displicência sobre a mesa de onde vos escrevo, entre o dicionário de português forrado a tecido cor de poeira e o candeeiro antiquado de quebra-luz verde-duende.

Fui dar com ela no chão, indiferente à doçura do crepúsculo matutino, amuada como donzela desprezada. O orvalho nos seus veios escorreu até ser gota e espelhou o meu olhar, como se um olho sem vida me observasse. Estava amarfanhada, claramente contrariada. Perguntei se preferia ser esticada e colocada como marcador de livros.

Como se pressentisse o ultraje, a folha rodopiou para fora das minhas mãos numa valsa exaltada e dramática. Baixei-me para a agarrar e voltou a escapulir-se como um pardal, fazendo-me persegui-la, ora acocorada, ora de pé.

Anda cá, se te apanho vais parar dentro de uma moldura de vidro 
e ficas para sempre esparramada num quadro para o qual ninguém vai olhar.

A folha-donzela voou com ímpeto suicida pela janela, mas foi salva pelo bailado fantasmagórico das cortinas brancas. Aconcheguei-a entre as mãos como um passarinho assustado e coloquei-a respeitosamente sobre os livros, na estante da sala, para que tivesse tempo de se recompor — antevendo que acabaria por reaparecer noutro lugar como obra de alguma assombração.

Passei essa noite a sonhar com o rangido das florestas, árvores que se abraçavam umas às outras de ramos estendidos e vozes de velhas cansadas que falavam através dos vendavais.

Acordei com a roupa da cama caída no chão, sentindo-me nua e observada. Era ela.
A folha. Na minha mesa-de-cabeceira. Tive a clara percepção que os sonhos que sonhei não eram meus, mas dela, memórias da floresta. Desfazendo-me das teias oníricas, disse-lhe bom dia e saí para trabalhar.

Quando regressei, já não se encontrava ali. Procurei-a por toda a casa sem sucesso. Senti um vazio pela sua ausência, uma tristeza difícil de explicar, a que acabei por me acostumar com o tempo — como um tempero que impede a alegria em excesso de se tornar ofensiva e imoral.

Mal me lembrava da folha até regressar a Primavera, quando reorganizei os livros nas estantes para espantar as energias invernosas. Eis então que a encontrei: enamorada da página cento e oito de “Amor de Perdição”, o papel já tatuado pelos seus veios. Camilo Castelo Branco teria compreendido tamanha devoção.

O arcano Cavaleiro de Copas sussurra-nos levemente ao ouvido, inspirando-nos a nunca deixar de procurar o caminho do amor.

Fechei o livro com delicadeza, sem retirar a folha e arrumei-o entre “A Relíquia” e “A Correspondência de Fradique Mendes” (para que o fino humor queirosiano aligeire a trágica perdição camiliana).

Jamais suspeitaria que ela fora uma mulher — que, de tanto chorar por um desgosto de amor, ficou seca, mirrada — transformada numa folha. Ficaria de coração partido se alguém me dissesse que as misteriosas e inexplicáveis gotas de orvalho eram reservas de lágrimas esquecidas dentro dos seus veios. Não importa.
Agora sorri, perdida de amores pela página cento e oito. Moram uma na outra.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1680
foto:  kellepics, licença CC0

Bilhete de Ida


Está decidido. Já anotei nos alfarrábios estrelares quanto tempo vou querer viver. Que alívio isso me trouxe, por Láquesis!

De-agora-em-diante (quase escrevia ‘doravante’, mas encontrei a palavra cheia de pó por falta de uso, assim engavetei-a embaraçadamente neste parêntesis), não darei um passo sem que a terra se sinta beijada com sacralidade pelos meus pés.

As janelas de cada olhar serão diariamente abertas com cortinas diáfanas de contemplação. Cada gesto será desenhado com graça e musicalidade. Cada abraço uma torrente de amor no envelope de dois peitos que se colam.

Nada poderá ser em vão. Não pode haver desperdício. Sem talento algum particular que me seja fecundo, seja eu arte. Que seja pelo amor, pela sabedoria, pelo prazer.
No mínimo, pela beleza.

É certo que o incerto pode intrometer-se pelo meio e abrir um atalho mais cedo que o esperado. Não há quem seja imune às tropelias do acaso. Porém, tal não me detém nem distrai — pelo contrário — apenas me impele na viagem.

Afinal, ninguém está a salvo de lhe cair um piano em cima ao sair de casa. Ou de um elefante obstinado e fatídico se sentar sobre si recusando-se terminantemente a levantar. Se acontecer, logo-se-vê.

Para todos os efeitos, está tudo planeado. Tenho o bilhete comprado, as malas feitas e embarco no comboio. Não há tempo a perder.

Procuro no bolso do casaco um lenço branco com alguns macaquitos do nariz que ninguém repara visto de longe para vos acenar em despedida. Os que me querem bem, não lamentem a minha partida.

Aqueles com quem de alguma forma falhei, aceitem as minhas sinceras desculpas. Se não quiserem aceitar, desculpem não poder ficar a desculpar-me para sempre, mas tenho um comboio para apanhar. Os que pensam mal de mim, regozijem-se por me verem pelas costas e não reclamem mais. Está tudo bem, está tudo certo. Estão todos perdoados. Agora vou.

O arcano Valete de Paus desafia-nos a ousar o extraordinário e a fazer planos impossíveis de garantir. Não é, afinal, toda a existência um plano impossível?

A natureza de tudo é a impermanência, a inexistência de garantia, o risco contínuo — e a paixão por acreditar na eternidade, ainda assim. Já nascemos com um bilhete para não-sei-onde e depois logo-se-vê. Apenas estou a usar o meu.

Muitas graças por tudo. O tchuque-tchuque do comboio anuncia a partida.
Vou-me embora, embora continue cá.

Contudo, acreditem, creiam-me: ainda que me vejam, que me escutem (id est, leiam) e que me toquem — já não estou mais aqui. Fui.

Até à vista!

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1679
Foto: xunseru, licença CC0

A Revolução dos Cravos


“Se quiser, tome, um cravo oferece-se a qualquer pessoa”, respondeu Celeste Caeiro, 40 anos, ao soldado que lhe pediu um cigarro. Não tinha mais nada para oferecer senão os braços cheios de cravos vermelhos e brancos.

O restaurante onde trabalhava, em Lisboa, celebrava nesse preciso dia um ano de abertura, e tinham comprado uma quantidade considerável de cravos para oferecer às senhoras que lá entrassem.

As notícias sobre a ocorrência do golpe de estado levaram a que o gerente tomasse a decisão de não abrir o estabelecimento. Celeste foi, como os restantes colegas, mandada para casa devido aos acontecimentos iminentes. Os cravos foram distribuídos pelos funcionários, para que os levassem consigo.

Curiosa e inquieta, quis ir ver a revolução que estava para acontecer com os seus próprios olhos. Após sair do metro, encontrou os tanques que se dirigiam para o Quartel do Carmo. Indagou os militares sobre o que estava a passar.

“Nós vamos para o Carmo para deter o Marcello Caetano. Isto é uma revolução!"
O soldado recebeu o cravo que Celeste lhe estendeu e enfiou-o no cano da G3. Celeste dos Cravos, como ficou depois conhecida, distribuiu as restantes flores que transportava pelos outros militares, que replicaram o gesto do camarada.

A revolução dos cravos trouxe a promessa da liberdade, que ainda falta cumprir.
O 25 de Abril ainda não acabou. Continua no dia 26, no 27, no 28 e por aí em diante — enquanto houver alguém com medo de sofrer retaliações por dizer aquilo que pensa. Enquanto houver alguém a abafar ou a deturpar a verdade. Enquanto houver desrespeito pelo livre arbítrio do outro.

A liberdade será conquistada quando todos aprendermos e integrarmos genuinamente os valores éticos; a honestidade absoluta, a confiança e a bondade desinteressada. Só então se poderá verdadeiramente chegar à Liberdade. Temos de merecê-la primeiro.

Até lá, continuamos todos os anos a comprar cravos vermelhos para celebrar a liberdade sem ter noção que o fazemos a partir de dentro da clausura em que nos encontramos, prisioneiros da ditadura da desonestidade, da corrupção, do desrespeito, da manipulação, da mentira e da falta de transparência, até mesmo por parte de quem trabalha em prol dela.

Nas pequenas e nas grandes esferas, a Liberdade ainda se encontra longínqua. Tanto quanto a verdade.

Avante, que a revolução ainda mal começou. O arcano Nove de Paus incita-nos a manter-nos lúcidos e alerta, a pensar por nós mesmos, a questionar tudo — e a não abandonar o barco. Se não formos nós, quem por nós?

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1678
foto: Leonardo Negrão - Global Imagens

Ai Jeremias


NÃO HÁ REMÉDIO que te cure essa urticária, Jeremias. Enfiou-se-te por entre os dedos das mãos e dos pés (não vamos contar aos senhores sobre as zonas pudibundas onde ela também comicha, fica descansado, hã).

Todo tu comichas em formigas-de-asas peludas e invisíveis que te alfinetam a cútis e o ânimo. Não te mexes, empastelado como os pastéis-de-bacalhau fritos há uma semana na tasca no Javardo. Esperas que alguém te apresente garantias para arriscar — e fazer algo da tua vida.

Ninguém o vai fazer, inocente pastel. As pessoas não querem saber. Estás por tua conta desde que nasceste. 

Bom Jeremias, a única garantia que temos na vida é a morte (e os impostos, esses também são certos). E, Jeremias, não é já a morte, por si, garantia suficiente para te agarrares à vida com as mesmas ganas com que te agarras à testiculária quando a urticária se te assanha?

A morte passou de alegoria de capa preta em noite-de-bruxas a realidade bruta quando a viste no rosto lívido daqueles a quem já disseste adeus, mas nem assim aprendeste. 

Quando a memória fria e metálica da foice sinistra se te olvidou do coração, voltaste ao de sempre: que a ossuda só leva os outros e se vai esquecer de ti. Ninguém acredita nela, com excepção dos que receberam más notícias do médico, os poetas e os desesperados.

Aconchegado no sofá que já tem o molde do teu corpo pesado e indolente, ficas a olhar para a porta da rua à espera de ouvir bater:

«Abre, em nome da Vida! 
Trago as garantias que precisas. 
A meu lado, vêm a Fada-dos-Dentes, o Pai Natal e o Coelho-da-Páscoa, como testemunhas. 
E uma bacia de água-de-malvas.  Para o prurido.»


Só que não. Enquanto estiveres vivo, estás a jogo e podes sempre reformular as tuas escolhas. Que esperas? A vida não te vai bater à porta, porque ela já vive na tua casa. 

Além de que as portas são propriedade da morte. E as janelas, da vida.

O arcano Sete de Copas aparece como uma urticária inesperada em zonas indecentemente impróprias, atiçando-nos a tomar decisões e a fazer escolhas enquanto não passamos para o reino-que-há-de-vir. 

A ver se quando chegar a hora de transpor a porta de saída, os anjos deixam de se deprimir com a costumeira expressão (desa)finada de lamento, por morrer sem ter vivido; de quem permaneceu na eterna espera da divina garantia de que viver não seria arriscado demais. Acorda e abre as cortinas, Jeremias. Ai Jeremias, Jeremias.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1677
Foto: StockSnap, licença CC0

Previsão meteoro(i)lógica


Chove sem parar. O cheiro doce da água, que se sente no fundo da língua, encontra-se em todas as ruas, embora se tenha tornado imperceptível como um perfume que se usa há demasiado tempo.

Podemos deitar fora os chapéus-de-palha, os fatos-de-banho, os colares de conchas. São inúteis também os chinelos-de-enfiar-no-dedo, as sombrinhas de papel que se mergulham entre as pedras de gelo nas bebidas à beira-mar, bem como as toalhas de praia com desenhos de palmeiras. E os gritantes flamingos rosa-choque insufláveis. Porque vai chover — para sempre.

Prevê-se que o chão das casas irá atapetar-se de musgo fofo e que a humidade cresça pelas paredes, raiada em tentáculos finos de verde-esmeralda. Pingentes de avenca suspendem-se nos tectos sobre camas feitas de lençóis de água.

À mesa, serve-se o jantar em pratos de vieira e vertem-se as bebidas de dentro de náutilos que ecoam o som das ondas distantes e pensativas. Trombas-de-água percorrem as ruas da cidade como crianças que brincam sem hora marcada para fazer os deveres de casa.

Vai chover para sempre. 

Quando o Estio colorir a pincel de cerdas de luz as ervas nos campos em tons sobrepostos de amarelo-seco. Quando o estrídulo das cigarras penetrar o silêncio quente de fim-de-tarde submerso no céu azul-ciano com riscos de avião.

Quando, nas viagens de férias, virmos caminhar árvores cansadas como donas-de-casa vindas da mercearia, os ramos carregados de frutos açucarados pelas ondas radiantes do Sol que não concede tréguas. — Ainda assim, a chuva continuará a cair.

Mesmo que não a vejam. Ainda que não vos molhe a roupa no estendal, tesa e ressequida pelo calor, cairá torrencialmente sobre a terra. Encontrá-la-emos nas lágrimas de riso, no suor, na saliva, nos fluidos de amor que trespassam as camas desfeitas.

Sempre a chuva. Em todo o tempo, águas que lavam, que purificam, que inundam, que viajam incessantemente pelo interior dos corpos, enquanto houver um coração a bater, enquanto houver sangue a correr, enquanto houver amor para viver.

Vai chover para sempre, com os deuses no Olimpo reunidos num opíparo banquete, brindando néctar em taças maiores que todos os oceanos fundidos num só, e uma pequena gota derramada equivale a uma vida inteira de chuvas torrenciais, abundantes, nutritivas. Assim é.

O arcano Dois de Copas salpica-nos em água doce e límpida, como o brilho aquático dos olhos sinceros que desaguam no fundo dos nossos, numa confluência livre de obstáculos e hesitações — a jorros —, de dois rios cristalinos; o amor que torna dois, um. A chuva veio para ficar.

Mais vos digo; a quem segue as previsões meteoro(i)lógicas: precipitem-se nesta precipitação e deixem ficar o chapéu-de-chuva em casa.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1676
Imagem: Thommas68, licença CC0

Como Lidar com o Bloqueio Criativo


PREPARO UM café simples (desta vez, sem os extraordinários obséquios aromáticos da canela e do açafrão) para servir de combustível milagro-epifânico. Deixo-o escorregar lentamente goela abaixo. E nada.

Quer isto dizer, ‘nada’ é uma forma de colocar a questão; em boa verdade, a Bic-laranja-escrita-fina gatafunhou uns metros de tinta que jazem apartados dos olhos do mundo, ao longo das linhas monocórdicas de um caderno fora-de-moda com capa do pato Donald.

Pintei o silêncio branco com as cores de Vivaldi. Depois, uns breves e delicados salpicos de Chopin. Nada ainda. Bato com a ponta do pé no chão como quem envia um discreto e contido (porém, não menos desesperado) pedido de socorro em código morse aos deuses telúricos.

Sorrio ao pensar que, no meu caso, os deuses telúricos seriam, na verdade, os vizinhos do andar em baixo, certamente a questionar-se porque caramba não descalcei hoje as botas quando cheguei. Porque há um texto para escrever, ora.
E asinha, asinha, que a vida não espera.

Bem se sabe que a pressa é o assassino a sangue-frio da criatividade, mata-a antes mesmo de ter chegado a nascer. O pé continua a bater ao de leve no soalho e o vernáculo sucede-se mentalmente, atiçando as ideias que se acabrunham com os nevoeiros do lusco-fusco. Descubro-me num terrível e infame bloqueio criativo que me atormenta o espírito e angustia o relógio.

Guardo o texto, meio alinhavado. Depois do pôr-do-Sol há menos distrações; terminá-lo-ei de pijama, quando não sobrar mais nada do dia e me encontrar mergulhada na bolha de silêncio que se instala quando todos dormem.

Rendo-me à noitada e eis que começam a surgir as primeiras ideias como estrelas tímidas, difusas no céu saturado pelos reflexos das luzes citadinas. Componho uma constelação lexical com cuidado e amor. Leio. Releio. Dezenas de vezes. Corrijo erros. Reordeno ideias. Corto aqui, coso ali, faço bainha acoli e a modesta colcha de retalhos lá começa a ganhar algum jeito.

Mal envio o danado do texto ao Vítor Arsénio, responsável pela paginação, encontro-lhe um erro que não tinha visto em nenhuma das dezenas de vezes que o li. Corrijo-o e reenvio escrevendo no assunto do email “versão definitiva”. Suspiro de alívio.

Agora, sim. Releio, desta vez, por prazer, livre de pressão. Ai, uma repetição de palavras. Volto a editar, torno a enviar o email, a “versão definitiva, final, finalíssima”. O bondoso Vítor, que me perdoa sempre, recebe as sucessivas e por vezes intermináveis versões definitivas das crónicas como uma mãe recebe os filhos, mesmo que cheguem tarde a casa. Depois de impresso, o jornal segue para as bancas e chega às mãos dos leitores.

Como é que um cronista sobrevive a um bloqueio criativo? Não sobrevive, meus senhores. Um cronista auto-flagela-se e deixa-se morrer chicoteado pelos próprios pensamentos enquanto o resto do mundo dorme o sono dos justos, sem dar por nada. Um cronista sofre, atormenta-se, angustia-se e ainda assim não deixa de escrever.

Se alguma vez se cruzar com um cronista, chegue-lhe uma cadeira, estenda-lhe uma manta para os pés. Enfim, cuide dele com esmero. Ele merece, garanto. E nunca, mas nunca, lhe pergunte sobre o que será a sua próxima crónica.

O arcano Valete de Ouros ensina-nos que plantando, tudo dá. Havendo honestidade e dedicação, chegamos lá. Como um texto que um qualquer cronista se dispõe a escrever — e escreve —, mesmo sem saber por onde começar.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1675
Foto: WikiImages, licença CC0

Os malmequeres que nos querem bem


Ai o que eu gosto de malmequeres. Reconfortantes e malcheirosos, aparecem todos os anos quando já ninguém espera por eles, no momento em que se perdeu a esperança de que o Inverno vá alguma vez terminar e nos rendemos quebrados pela chuva mole, teimosa e eterna, um regozijo para o bolor que se imiscui pelos roupeiros bafientos e trepa paredes e ânimo.

Junto duas colheres de café solúvel, uma de açafrão e outra de canela em pó. Misturo água quente, mexo e levo aos lábios a velha caneca, fumegante e aromática; tem, por certo, muito mais de trinta anos. Era eu gaiata — foi quase ontem. É a minha caneca preferida.

A minha mãe tinha uma prima que não tomava banho. Poderia chamar-se Vera (prima-Vera), mas era Bárbara o seu nome — e bárbaro o tule odorífico em sua volta, quase visível, quase palpável. Paz à sua alma, já há muitos anos liberta do corpo que raras vezes terá entrado num chuveiro. Não importa, estimávamo-la na mesma.

Sorvo devagar o café-com-açafrão-e-canela na caneca com o desenho do texugo oferecida pela prima Bárbara numa das suas visitas e deixo a música tocar alto como que a exorcizar as últimas sombras nebulosas do Inverno: “A Primavera” de Vivaldi, interpretada pelo violinista Itzhak Perlman.

Era muito boa senhora, mau grado a falta de esmero na higiene pessoal. Os cabelos pintados de azeviche, impecavelmente ordenados com laca, o sorriso sereno e acolhedor, sempre amorosa e paciente. Falava baixinho, a dentadura ficava-lhe larga. Não me consigo lembrar sobre o que conversava, mas recordo a sua generosidade e bondade.

A prima Bárbara nunca avisava quando vinha visitar-nos. Aparecia sempre de surpresa, pela Primavera; como os malmequeres, reconfortantes e malcheirosos. Inesperados rasgos de luz invadem a casa, ou é isto ou é a mistura do açafrão e da canela no café. Olho pela janela e vejo malmequeres lá fora, um espectáculo para a alma oferecido pela Natureza, que escapa à atenção de quem passa. Pouso a caneca vazia e termino a crónica com a alma cheia de pétalas.

O arcano Ás de Paus aparece num súbito e inesperado impulso, como os malmequeres salpicam de luz os campos verdes e encharcados pelas chuvas, inspirando-nos a deixar o Inverno para trás e, junto com ele, as sombras, a indecisão, os receios. Assim, sem mais nem menos; a renovação e a novidade chegam para quem se dispuser a colher os malmequeres.

Hazel
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Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição 1673
Foto: Couleur, licença CC0