Amor de Amigo

A amizade é uma espécie de amor onde não há tensão sexual. Apaixonamo-nos pela pessoa, deliciamo-nos com as suas piadas, até mesmo quando não têm assim tanta piada, estamos lá para apoiar e para sofrer junto nos momentos difíceis, brindamos à vida quando esta é generosa para com o nosso amigo. Partilhamos segredos, conselhos, fragilidades, medos, afectos.

Entregamo-nos de corpo inteiro, alma e coração escancarados, deixando apenas os genitais e pouco mais de fora da equação.

Assume-se, sem precisar de se lhe fazer referência, um compromisso de afecto, honestidade, lealdade e dedicação mútuos.

Quando desaparece um destes quatro alicerces que sustentam as paredes da casa que abriga os nossos sentimentos, esta degrada-se até acabar por ruir, causando uma dor enorme e prolongada. A perda de um amor pode vir a curar-se e depois voltamos a amar e a desejar alguém.

Contudo, a perda de um amigo é irreparável. O vazio que fica nunca mais volta a ser preenchido, por muitos novos amigos que venhamos a fazer.

Confesso, por isso, o meu receio de fazer novos amigos. Assumo a minha cobardia e fragilidade. Porque gostar de alguém é confiar, mostrar-lhe o nosso mapa interno onde, para além dos frondosos jardins perfumados, também existem estradas mal sinalizadas habitadas pelos fantasmas de amigos que deixaram de o ser, precipícios de memórias sem futuro e áreas em construção onde o perigo de queda é intenso - e não se usa capacete ou cinto de segurança.

Não obstante, gosto de conhecer pessoas, de observá-las. Fascinam-me as suas particularidades, caprichos e preferências. Comovem-me as mágoas. Desejo-lhes bem. Emociono-me quando sinto que também me querem bem. E, inevitavelmente, as barreiras começam a desaparecer, os laços a estreitar-se, e a amizade surge no horizonte cálida e delicada como o nascer do dia.

Nasce espontaneamente - não porque alguém decidiu. Apaixono-me novamente e tomo consciência de que a fragilidade nos leva à injustiça, por vezes. Reconheço que no seio da amizade encontrei confortos e alegrias que deram novo sentido à minha existência. Porque um amigo às vezes é mais do que família. É uma extensão do melhor que temos em nós.

O arcano Três de Copas leva-nos a reflectir sobre a necessidade de alimentar a amizade e de celebrá-la, de dar o melhor de nós sem esperar contrapartidas. Porque, se a família é feita de laços de sangue e de obrigação, os laços entre amigos unem-se pelo afecto, afinidade e cumplicidade. Façamos uma pausa para saborear o lado mais doce da vida, junto de quem nos quer bem, seja ele do nosso sangue, ou não, seja humano ou animal. O mundo que espere um pouco - enquanto o melhoramos.

Hazel

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição de 30 Junho
Imagem: Anne Taintor

Elogio da preguiça


A preguiça, um dos sete pecados capitais, ganhou uma má reputação atribuída pela Igreja Católica desde há tantos séculos que nem valeria a pena contá-los, tornando culposo o simples e inocente prazer de estar parado sem nada fazer.

Seria religiosamente obrigatório o movimento constante - e desgastante - sem permissão moral para nos entregarmos ao ócio, ao vazio, à doçura semi-erótica de um corpo que se estende sobre uma cama com lençóis macios que se moldam à nossa volta num abraço digno de Morfeu.

Contudo, se fôssemos culpados por nos abandonarmos à preguiça, também o seria a Terra, que repousa ciclicamente para que possa voltar a dar frutos. Contrariar as necessidades básicas humanas seria uma arrogância da nossa parte; equivaleria a tentar impor-nos às forças da Natureza.

Dir-se-ia que a preguiça não é um pecado, mas, pelo contrário, um bem de primeira necessidade, do qual se deve usufruir com esmero, delicadeza e parcimónia. Tomá-lo em excesso tornar-nos-ia flácidos de carácter, destemperados de ambição, cadáveres vivos, perfumados e de faces rosadas, sem expectativas ou anseios. Na medida certa, é salutar e regenerador.

A carta Cavaleiro de Ouros leva-nos a reflectir sobre a necessidade de abrandar a velocidade, parando para apreciar a paisagem, tirar os sapatos e sentir o contacto dos pés descalços com a terra fresca, regressando, assim, à nossa essência.

É preciso deixar que a poeira das atribulações do dia-a-dia possa ter tempo para voltar a assentar, para que a alma se apazigue e o coração aprenda a saber esperar, a ter paciência - a dar tempo ao tempo. Que seja restituída a merecida dignidade à tão desprezada e simultaneamente cobiçada preguiça.

A tranquilidade, que caminha de mãos dadas com a paz de espírito, é uma arte que se aprende quando nos permitimos parar sem que nos sintamos culpados por isso. É que, ao contrário do que se diz, nem sempre parar é morrer. Às vezes, parar é crescer por dentro e estender raízes alimentadas pelo conforto e pela segurança da rotina que se instala.

A preguiça é uma droga que cura, embora possa tornar-se viciante e letal no momento em que a pacatez encontra a acomodação, e esta última toma o seu lugar. Nesse instante, devemos despedir-nos graciosamente da preguiça como se de uma visita se tratasse, daquelas que se tornam incómodas por ter ficado tempo demais, e marcamos novo encontro dentro do prazo necessário para que lhe voltemos a sentir a falta.

Hazel

Crédito foto
Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, edição de 23 Junho

Sonho de uma noite solsticial

Imagem: John William Godward
De olhos fechados, vi-me aconchegada entre os ramos verdes das árvores com a delicadeza de uma ave no ninho. Estendi uma perna devagar. 

Os nós dos troncos de madeira roçaram na pele nua, arranhando-a como as unhas afiadas de um gato. As folhas frescas faziam-se cama sob o meu peso etéreo. 

Não sei se era mulher, se era pássaro. Recolhi as asas brancas nas minhas costas, inspirei o ar adocicado e continuei a dormir longe da terra, longe do mundo.

Sob os auspícios da Lua Cheia de Verão,

Hazel

Querer não é poder. É preciso fazer também.

A excêntrica actriz norte americana Bette Midler afirmou, certa vez: “Quero tudo, e quero entregue em minha casa.” Que atire a primeira almofada de plumas quem nunca desejou, nem que fosse por um inocente segundo, que todos os seus desejos fossem instantaneamente realizados sem qualquer esforço, num estalar de dedos. 

Envolto numa nuvem sobrenatural de fumo, não se sabe se de incenso de sândalo ou nevoeiro igual ao das manhãs frias de Inverno, elevava-se o lendário génio da lâmpada mágica com um turbante de seda púrpura, barbas longas e negras, e toda a generosidade para oferecer. Bastaria desejar para ter. Nem saberíamos por onde começar!

Entretanto, toca o despertador às sete da manhã, carregamos no botão de snooze, e acabamos por apanhar um trânsito infernal. Chegamos atrasados ao emprego e tentamos passar de fininho enquanto os colegas erguem o pulso e olham para o implacável relógio num tom de propositadamente mal disfarçada censura. 

Na vida real, não existem lâmpadas mágicas, e a Bette Midler também nunca chegou a ter tudo. Em todo o caso, ninguém disse que não podemos conquistar o que desejamos. Se o fez, mentiu-nos descarada e imperdoavelmente.

Esta semana, a carta 8 de Ouros leva-nos a reflectir sobre as nossas próprias capacidades, que devemos pôr em prática, não a meio-gás, mas a pleno vapor quando temos um objectivo em mente. Não podemos obter resultados sem genuína e honesta dedicação, minúcia, atenção ao detalhe, tempo de permanência, ritmo, esforço e amor pelo trabalho que desempenhamos. 

Uma floresta não cresce de um dia para o outro. Nós também não nascemos de um dia para o outro. Tudo requer tudo. Se apenas entregamos um pouco, de má vontade e com falta de fé, teremos de contentar-nos com pouco também.

Podemos conquistar o que desejamos, se estivermos realmente dispostos a fazê-lo acontecer, se houver amor e perseverança suficientes. Não pode haver pressa, ansiedade ou tempo para duvidar - e ainda menos para olhar para o lado e tentar ver se o vizinho já o conseguiu antes de nós. Fixemos o olhar em longas distâncias, não curtas. 

O percurso em direcção aos nossos objectivos pode revelar-se exaustivo e desprovido de motivação externa. Por esse motivo, muitos desistem, desmotivam-se, e ficam pelo caminho a lamentar a falta de sorte.

Enquanto dependermos das palmadas nas costas dos outros para andarmos para a frente, nunca conseguiremos avançar mais que uns passos hesitantes. Os outros, provavelmente, até irão levantar obstáculos ou tentar fazer-nos duvidar de que conseguiremos ou de que somos dignos de conseguir seja o que for na vida. Por vezes, esses outros até são os que estão mais próximos de nós. 

Temos de ser nós a impulsionar-nos continuamente para conseguir um milagre. Porque os milagres existem, se estivermos dispostos a trabalhar para merecê-los. O génio da lâmpada mágica somos nós.

Hazel

Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 16 Junho
Foto: Cylla von Tiedemann

O misterioso livreiro-alfarrabista de Cascais

Enquanto outros jovens da sua idade iam jogar futebol, Jorge tornou-se, aos 19 anos, presença assídua nos leilões de arte e antiguidades, em contraste com os frequentadores habituais, de faixa etária bastante mais avançada. Foi assim que tudo começou.

Conheci a Livraria Alquimia na internet. Compram e vendem livros raros, antigos e contemporâneos. Não estão abertos ao público. As visitas são feitas por marcação, apenas acessível a amigos e amigos-de-amigos. Entre uma enorme diversidade de temas, possuem uma quantidade saborosa de livros sobre ocultismo, o que aguçou a curiosidade e imaginação desta vossa escriba que, além de ser apreciadora de livros e antiguidades, viu o filme "A Nona Porta" mais de vinte vezes.

O responsável pela página online, Jorge Telles Menezes, com quem comuniquei por escrito, explicou-me como funciona a invulgar livraria: 

"É um Showroom onde recebo clientes por marcação, normalmente para amigos e amigos de amigos. Fica em Cascais. Este tipo de sistema é bom, visto que posso dedicar um bocado só a determinado cliente, é um atendimento personalizado para cada pessoa. Sou contra as grandes livrarias onde se vende tudo igual, pensando no lucro imediato. Cada cliente é uma pessoa única, temos de o conhecer bem, de falar com ele, de aprender com essa pessoa, pois não é só chegar comprar e até uma próxima. Pode parecer um exagero, mas acaba por ser isso que torna a profissão de Livreiro tão especial e gratificante."

Esta vossa escriba tinha de ir ver com os próprios olhos que local é este, que mistérios oculta, e quem é a enigmática pessoa por trás disto tudo.

Alguns dos livros mais raros encontram-se expostos neste armário centenário

A extrema educação e polidez com que Jorge Telles Menezes respondeu às minhas indagações levou-me a crer que iria encontrar um cavalheiro cerimonioso com mais de setenta anos, de cartola alta, capa preta empoeirada, monóculo e bengala, saído de um romance de Eça de Queiroz.


Contudo, para minha surpresa, quem abriu a porta para me receber foi um jovem de camisa de linho branca, calças de ganga e cabelo puxado para trás atado com um elástico. Informal, contudo sóbrio. Profissional, afável e astuto. Reservado e muito cuidadoso na escolha das palavras, mas de sorriso aberto e voz bem timbrada.


Quando começou este negócio, há mais de 6 anos, Jorge era, provavelmente, o mais jovem livreiro-alfarrabista português, o que lhe valeu alguns momentos agridoces com negociantes mais velhos, ardilosos e pouco escrupulosos, que se aproveitaram para ludibriá-lo. Acidentes de percurso que trouxeram lições rapidamente assimiladas.

Actualmente, com 33 anos de idade e dedicado a tempo inteiro a este negócio, Jorge conhece todos os seus livros em detalhe por dentro e por fora, sendo um anfitrião que nos guia com uma sabedoria exímia em viagem pelas páginas que deslizam como seda sob os seus dedos.


No seu acervo, tem milhares de livros raros, muito raros, antigos - a maior parte desde o século XIX  - e contemporâneos.


Nasceu e cresceu em Campo de Ourique, Lisboa, numa casa muito antiga de 15 assoalhadas onde repousavam quadros de outros tempos e peças de mobiliário centenárias, que foram prevalecendo ao longo de várias gerações.

Pensava vir um dia a tornar-se veterinário, devido ao seu grande amor por cães, contudo, foi aos 19 anos, quando reparou num dos vários convites para leilões de arte que chegavam a casa dos seus pais e ficavam abandonados sobre uma cómoda sem que ninguém lhes desse importância, que o seu percurso de vida ficaria definido para sempre.

O livro mais antigo que detém de momento, sobre Medicina, do ano 1751
Começou a coleccionar livros de arte de forma mais consistente quando entrou na Universidade, onde tirou o curso de História da Arte e, por se ter tornado um conhecedor dos melhores locais para encontrar livros raros, começou nessa época a fazer as primeiras vendas - aos colegas.


A relação entre Jorge, o mais jovem de 3 irmãos, e os livros já vem de tenra idade. Com apenas 1 ano, não se contentava com os livros infantis, preferindo explorar os livros dos crescidos, entretendo-se a folhear e observá-los, mesmo sem ainda saber ler.


Teve durante algum tempo uma loja aberta ao público com um sócio em Lisboa, mas decidiu reformular o negócio, optando por se dedicar apenas a este espaço privado que criou em Cascais, onde está rodeado de livros sobre ocultismo, literatura, poesia, artes, romance, literatura erótica, teosofia, mitologia, auto-ajuda, hinduísmo, fotografia e outros.


Os livros vêm de diversas proveniências; colecções privadas, leilões, outros livreiros-alfarrabistas, heranças. Confessa que no início lhe era emocionalmente difícil dizer adeus a um livro, mas aos poucos acabou por se habituar a deixá-los partir.


O tema mais procurado pelos seus clientes é o esoterismo, sendo as suas faixas etárias maioritariamente a partir dos 30 anos até aos 60-70.


Está a realizar uma formação de instrutor de Yôga pelo Método DeRose Cascais.
É vegetariano, tem um cão e conta-me que nunca se encaixou nas regras estabelecidas pelo sistema de ensino, sempre pensou "fora da caixa".

Os livros não se limitam a este showroom, mas estão espalhados por toda a sua casa.
Lê sempre vários ao mesmo tempo; actualmente, Vítor Adrião e Helena Blavatsky são alguns dos autores que se encontram na sua mesa de leitura. Escreve prosa poética e gosta de declamar poesia.

Não se considera um solitário, mas existe uma misteriosa alma de eremita neste jovem sábio que não gosta de ser fotografado e que, após nos termos despedido, regressa ao seu universo feito de páginas antigas e de livros que sussurram, parecendo transportar consigo toda a paz que existe no mundo.

Obrigada por teres feito um parágrafo para me receber, Jorge.

Hazel

Bofetadas e soutiens queimados

Foto: Pinterest

O país anda à bofetada. As pessoas de Trás-os-Montes que querem desdentar Nuno Markl e José Cid. O anterior Ministro da Cultura com as prometidas carícias faciais em grande velocidade. Os pais dos alunos das escolas públicas versus os colégios privados. 

Os clubes de futebol e os seus adeptos enraivecidos. Os activistas dos direitos das minorias, dos animais e dos oprimidos. As feministas. Os machistas. Os ambientalistas. 
Os bairristas que rivalizam entre si, esquecendo-se que somos todos um país e não um conjunto de cidades. Os religiosos fervorosos de Belas versus o Projecto Casa Assombrada. Os intolerantes à intolerância. As redes sociais estão a ferro e fogo. 

Paf! Voam dentes pelo ar, queimam-se soutiens e reputações, saltam os olhos das órbitas, a saliva ácida escorre nos cantos das bocas que cospem impropérios e maldições e as mesas são socadas com revolta.

Não somos mais um nobre povo de brandos costumes. Esta nostálgica característica ficou adormecida nos livros de História que repousam empoeirados nas bibliotecas, tornou-se uma memória longínqua e difusa, quase fantasiosa. 

Talvez as pessoas tenham perdido a capacidade de amar, de desculpar e de pedir desculpas, de compreender os pontos de vista dos outros. Talvez não tenham tempo para isso; porque está trânsito; porque chegam tarde a casa; porque estão cansados e com carências vitamínicas; porque os vizinhos têm a música alta e já não suportam mais o ritmo infernal da kizomba; porque estão com alergia ao pólen, de narinas entupidas, ranho a ameaçar sair e os nervos à flor da pele. Apetece gritar, apetece mandar tudo e todos para o raio que os parta.

Esta semana, a carta 5 de Paus chama-nos a atenção para as batalhas, conflitos e rivalidades, e a forma como tudo isso nos absorve a energia e o romantismo, deixando-nos cansados e intratáveis.

“Em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”. Nesta casa que habitamos, estamos a alimentar-nos de migalhas. Erguem-se as vozes acusadoras, a culpa é dos governos! - dirão. Seja. Os governos - que, a propósito, fomos nós que escolhemos - podem ser os responsáveis pelo estado de crise económica - pela falta de pão para o corpo. Mas o pão para a alma, ninguém pode procurar por nós. Erguem-se novamente as vozes acusadoras, mas eu não acredito em religiões! Não precisamos de religião para alimentar a alma. Precisamos, sim, de alegria, amor, perdão para aqueles que o merecem e paixões. 

Cada um que procure a sua forma de lá chegar, sem se contentar com migalhas, sem atacar os outros e sem aceitar que os outros o desrespeitem. Porque se observarmos com algum distanciamento emocional, veremos que é exactamente isso que temos andado a fazer. Quem sabe se, de alma alimentada e com uma maior verticalidade espinal, não recuperaremos a nobreza de alma, a coesão, a paz e até mesmo a economia. Ainda acredito nisso.

Hazel


Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 09 Junho

Uma lisboeta pela primeira vez no Porto

Ah, Porto, Porto. Já todos os portugueses te conheciam menos eu. Esperei tanto tempo pelo privilégio de te visitar pela primeira vez. Uma eternidade que só uma cidade eterna como tu poderá perdoar. E que cidade. Rendo-me perante ti.

Torre dos Clérigos
As tuas ruas limpas, espaçosas e diáfanas exalam amor a cada passo que damos.
Quem mora no Porto ama o Porto. E eu também fiquei a amar. Notei com admiração o respeito pela arte, pelos edifícios e monumentos.

Nos meus olhos, trago os teus horizontes onde a história vive intocada, e a foz do Douro, onde poderia abandonar-me aos prazeres da contemplação por horas perdidas - não fosse a minha ânsia de percorrer as tuas ruas e descobrir todos os teus encantos.

Estava Sol e calor. O trânsito era intenso, mas não selvático. Havia música nas ruas. Jovens que se sentavam com um bloco de papel no colo a desenhar a beleza que nos rodeava. Sangria cor de rubi em copos generosos. Muitas lojas de comércio tradicional.

Jardins românticos com bancos de madeira. Os barcos a deslizar nas águas do Rio Douro que ao longe brilhavam como um espelho da cor do vinho do Porto.
Sorrisos sinceros e calorosos. Os nomes das ruas inscritos em tabuletas pitorescas.

Bandos de pássaros que dançavam em espirais sobre as copas das árvores verdejantes e os edifícios antigos compondo um cenário perfeito - numa cidade perfeita.

Marionete e livros antigos à entrada do Mercado do Bolhão

Mercado do Bolhão

Olha a fruta boaaaa!

Artesanato no Mercado do Bolhão. Que pena não ter comprado nada!
Existe uma coesão entre as pessoas que não há em mais parte alguma deste nosso pequeno e rectangular país. As pessoas do Porto são dotadas de um verdadeiro calor humano, de emoções intensas e profundas, um sentido de humor e uma generosidade ímpares. Só no Porto se pode dizer tantos palavrões sem parecer mal, porque no Porto todas as palavras são igualmente dignas e amadas. Existe uma verdade, uma sinceridade nas gentes do Porto que talvez nem os próprios se apercebam possuir.

Livraria Lello
A Livraria Lello, classificada como uma das mais belas do mundo, é tão linda quanto as pessoas dizem. Um universo de magia e beleza, onde uma escadaria hipnótica serviu de inspiração para as descrições de Hogwarts pela autora de Harry Potter, J.K. Rowling, enquanto viveu na Invicta.

Aquelas portas de vidro antigas



Comprei um livro sobre Fadas!

A escadaria que nos recebe como uma língua vermelha que se estende até ao chão de madeira
A Francesinha
Em Roma, sê romano. Ninguém pode ir ao Porto sem provar a famosa "francesinha", um prato típico da Invicta, que consiste em duas fatias de pão com bifes, fiambre, queijo e um molho único (tem mais ingredientes, mas como desconheço a receita, só estou a referir aqueles que identifiquei). 

Quem diria que um singelo e pouco expressivo quadrado a flutuar em molho espesso poderia oferecer tamanho festim para o palato. Delicioso!

Hotel dos Aliados
Escadaria do Hotel dos Aliados
Quarto 503. Simples, prático e confortável. O shampôo cheirava a rosas doces.

Café no Majestic
Só conhecia o Majestic através desta música do Pedro Abrunhosa.
É um local emblemático do Porto, muito pomposo, antiquíssimo, belíssimo e caríssimo. Tudo lá termina em "íssimo" (por isso, só bebi café!).

Rua das Flores
Na Rua das Flores, a arte, o sentido de humor, a cor, a alegria - e as flores - moram em todos os cantinhos. Tocava António Variações num dos bares!

Interior da Estação de S. Bento
Finalmente, as estações de S. Bento e Campanhã, que conheci a vida inteira apenas no jogo do Monopólio (!), se tornaram reais para mim. O mesmo se aplica à Rua de Santa Catarina (do conjunto de ruas vermelhas no Monopólio), Sá da Bandeira (laranja!), Aliados (acho que é das amarelas), Praça da Liberdade (verde), Rua das Flores, e várias outras.

Estação de Campanhã

Sinto-me profundamente grata por ter sido tão bem recebida na Invicta. Mesmo sendo eu uma forasteira - uma "moura" de Lisboa - nunca me senti como tal. O Porto pegou em mim ao colo e amou-me com paixão. E eu retribuí.

As gaivotas no céu nocturno da Praça da Liberdade no Porto (vídeo)

Quando afirmam "o Porto é uma nação", têm toda a razão. É mesmo uma nação.
Não sendo uma pessoa citadina, se tivesse de morar dentro de uma cidade, seria feliz no Porto e de bom grado tomaria a pronúncia nortenha como minha.

O meu agradecimento ao J. P. Alves de Sousa, por me ter mostrado esta bela cidade.

Obrigada, Porto. Mal posso esperar por regressar.

Com um pouco de pronúncia do Norte,

Hazel

Remédio santo para a impotência

Foto: Flóra Borsi
Convencidos que não conseguíamos voar, cortámos as pontas das próprias asas e enclausurámo-nos numa gaiola pequena. Habituámo-nos a ir vivendo por compartimentos, passando a maior parte do tempo a fazer algo que não nos apaixona, resignados, conformados - domesticados. Somos devolvidos a nós mesmos no fim do dia vampirizados, sem pingo de força anímica pelo esforço de remarmos continuamente contra a maré.

Tem de ser assim. Não há alternativa; se a há, não há tempo para procurá-la. 
Vive-se entre a espada e a parede e, ou se culpa a espada, ou se culpa a parede. É mais fácil sentirmos pena de nós mesmos, vítimas dos descompassos e das contravoltas da vida, impotentes perante o vilão que nos subjuga.

Aguardamos por um Messias, um benemérito que reconheça o quão especiais e merecedores somos. Que nos compense - e recompense - por tudo o que já passámos. Esperamos permanentemente por uma indemnização divina que nunca chega, porque Deus anda distraído. 

Ansiamos pelo subsídio de férias que irá finalmente salvar isto tudo. Por uma proposta irrecusável de emprego num local com vista para o mar e chão alcatifado - mas sem ácaros. Por um grande amor montado num cavalo branco de crina longa e resplandecente, disposto a fervorosos actos de loucura que envolvam declamações, serenatas à chuva e valsas dançadas na Rua Serpa Pinto indiferentes aos olhares embevecidos dos transeuntes. E aguentamos. Ele há-de chegar. Só mais um esforço. 
Os anos passam e tu aguentas. Espera. Um dia vais conseguir. Aguenta. Há-de chegar a tua vez. Quem sabe se não será já amanhã, ou na semana que vem.

Toc, toc. Eis que o destino eventualmente nos bate à porta: 
“Eu vim para avisar que não vem ninguém.”
Ora bolas. Levamos com o calendário mesmo em cheio na cara e tomamos consciência que passámos a maior parte da vida a apequenar-nos, sentindo-nos incapazes, impotentes, castrados. Culpámos os outros pelos nossos fracassos e frustrações, quando, afinal, esse vilão que nos impede de ser livres e felizes é o nosso próprio medo, alimentado pela falsa crença de que há-de vir algum herói para nos dar a mão. Se heróis houvesse, o mais certo seria que nos dessem uma palmada admoestatória na mão que estendemos. Seria uma humilhação. Sorte a nossa que eles só existem nas histórias.

Esta semana, o arcano 8 de Espadas surge como um rasgo brusco de lucidez para informar-nos que se é de um herói que precisamos, teremos de ser nós a desempenhar esse papel. Se queremos ser livres, sejamos. Se queremos ser amados, procuremos a quem amar. Se queremos ser fortes, façamos força até que nos saltem as veias nas têmporas. Se queremos ser respeitados, respeitemo-nos primeiro a nós mesmos, estabelecendo limites para aquilo que consideramos aceitável – e sejamos coerentes com os mesmos.

Não vem ninguém. Estamos mesmo por nossa conta. As penas que cortámos voltam a crescer porque está na nossa natureza estender as asas e voar. É esse o nosso propósito de vida. Podemos sair a qualquer momento da gaiola onde nos enclausurámos se vencermos o medo de arriscar, de aprender, de transformar, de mudar por dentro e por fora. Não existem heróis, mas também não existem vilões. São todos personagens criadas por nós, autores heroicos e avilanados desta história.

Hazel


Crónica semanal publicada no Jornal O Ribatejo, 2 Junho